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Opinião
As marcas não são todas iguais… e os supermercados sabem isso
A confiança, aliás, é talvez o ponto-chave de todo este cenário. Segundo os dados, 95% dos consumidores dizem que confiar numa marca é muito ou bastante importante.
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Um estudo recente descreve este momento como “o novo normal”, mas na prática significa que: os consumidores deixaram de acreditar que a estabilidade vai voltar e passaram a viver em modo cauteloso permanente. Não é pessimismo declarado, é sobrevivência emocional. As pessoas sentem-se ligeiramente mais confiantes do que há um ano, mas isso não se traduz em dinheiro extra nem em disponibilidade para pagar mais sem questionar.

Para quem trabalha no universo dos bens de grande consumo, isto tem um grande impacto. Já não há espaço para soluções automáticas, nem para aquela velha ideia de que “se for barato, vende”. O consumidor exige mais critério, mais substância e mais identidade e esse é um território em que as marcas de fabricante continuam a ter trunfos que as marcas próprias não conseguem igualar.

O relatório da NielsenIQ “Consumer Outlook: a guide to 2026” é claro: crescimento substancial já não vem da inflação. Os preços subiram tudo o que tinham para subir e insistir nesse caminho seria suicídio. O futuro imediato passa por ganhar volume, aumentar relevância e estimular compra frequente.

Em Portugal, onde o poder de compra está comprimido e onde o consumidor faz, permanentemente, contas à vida, isto ainda é mais evidente. Quem tentar empurrar aumentos sem dar valor e relevância em troca vai ser penalizado. As marcas de fabricante têm marcas, produtos, inovação e história e podem justificar valor. As marcas da distribuição são normalmente mais baratas e capitalizaram eficazmente o momento de fragilidade económica.

É verdade que as marcas próprias ganharam terreno. Já não são apenas versões low-cost. Mas também não são ainda equivalentes às marcas de fabricante em diferenciação, inovação ou consistência. Os retalhistas não investem tão aprofundamente em I&D, não lideram categorias para além da sua própria prateleira e ainda têm dificuldade em construir valor de marca, para lá da insígnia. Utilizam as marcas de fabricante para criar referências, aprendem com elas e tentam aproximar-se da sua imagem. E conseguem fazer com que os seus produtos sejam bem sucedidos porque possuem o controlo do linear e os algoritmos de visibilidade. Mas isso mais do que gerar vínculo, essencialmente aproveita rotina e contexto económico.

Num mercado como o português, onde há ainda relação emocional com certas marcas, tradição de consumo e expectativa de qualidade comprovada, este jogo pode ter rápidas inflexões. Os consumidores podem comprar marca própria em tempos de aperto, mas quando a situação estabiliza ou quando percebem diferenças em relação Às marcas de referência, regressam ao que lhes inspira confiança real. E essa confiança foi construída pelas marcas de fabricante ao longo de décadas, não nasce da noite para o dia com uma embalagem mais sofisticada ou uma comunicação mais incisiva.

A confiança, aliás, é talvez o ponto-chave de todo este cenário. Segundo os dados, 95% dos consumidores dizem que confiar numa marca é muito ou bastante importante. Isso não se compra com uma promoção ou com uma estratégia de reposicionamento pontual. As marcas de fabricante têm produto, têm pessoas, têm reputação, têm responsabilidade assumida, mas têm de enfrentar estratégias desequilibradas de preço e visibilidade. É, pois, uma corrida de fundo entre a resposta mais conjuntural e táctica e a estratégia mais estrutural de quem sustenta o sector e serve de bússola ao consumidor.

É aqui que entra a simplicidade: não no sentido de reduzir ambição, mas de afinar o essencial. Os consumidores estão cansados de ruído e oferta desestruturada ou afunilada, mas não querem regressar a um mercado genérico e indiferenciado. Querem clareza, não monotonia. E é, pois, essencial que as marcas de fabricante reorganizem portfólios com lógica, cortem ‘gordura’ e reforcem o que fazem bem, enquanto as marcas do retalho têm mais dificuldade em reinventar-se para além da margem que o seu próprio espaço lhes confere.

Depois há o digital, que já não é acessório. Os retalhistas perceberam que podem vender espaço publicitário dentro dos seus próprios canais e usar os dados para promover os seus produtos. Mas o facto de se colocarem como “plataformas de media” não os transforma automaticamente em criadores de valor. As marcas têm de ocupar esse território com inteligência, negociar presença, exigir compensação justa e não aceitar que o seu investimento ajude essencialmente a promover quem lhes vai retirando share de forma silenciosa.

A descoberta do produto está fragmentada: redes sociais, comparação online, app do supermercado, loja física. Isso obriga as marcas de fabricante a aparecerem de forma consistente em todos estes pontos e confere-lhes a obrigação de controlar mais diretamente, mas também mais adequadamente e mais eficientemente, a sua narrativa. Quem tem ADN, reputação e história tem sempre mais para dizer.

A tecnologia acrescenta outra camada: a inteligência artificial vai definir recomendações, ordenar resultados e sugerir escolhas. As marcas de fabricante devem preparar-se para esse salto: organizar informação, optimizar conteúdos, estar presentes nos sistemas de recomendação., por contraponto com as marcas próprias mais dependentes do ecossistema fechado do retalhista. Se o consumidor procurar fora dessa bolha, a sua visibilidade reduz-se amplamente.

Entretanto, a inovação e o processo continuam a desafiar margens e fórmulas. Reformular produtos, gerir embalagens e ajustar custos exige competência, infraestruturas de investigação, cadeias de fornecimento robustas e capacidade de comunicação. As marcas de fabricante têm internamente estas armas. As marcas da distribuição fazem outsourcing de parte importante desse esforço (e risco) e esperam que o fornecedor lhes resolva o problema.

Há ainda fenómenos emergentes, como a mudança de hábitos alimentares provocada pelos medicamentos para perda de peso. Marcas com capacidade de inovação vão explorar novas porções, novos perfis nutricionais, embalagens otimizadas e propostas funcionais. Já se viu isto com os produtos sem lactose, sem glúten, hiperproteicos ou vegetarianos: quem lidera, uma vez mais, são as marcas de fabricante.

Com tudo isto, há uma questão central: como continuar a crescer com margem, relevância e identidade? Há várias respostas, mas todas passam por quem tem marca e reputação, estrutura e visão. Explicar bem o preço, justificar produto, equilibrar portfólio, reforçar o que vende e eliminar o que pesa, trabalhar com o retalho sem abdicar do valor, exigir contrapartidas justas e investir nos canais digitais certos com métricas reais. Tudo isto está ao alcance de quem constrói as categorias, mais do que quem apenas as replica.

O retalho vai continuar a tentar ocupar espaço mediático e mental, e vai usar a sua posição para promover as suas marcas. Mas isso não é inevitável nem imparável. A diferenciação existe, o consumidor reconhece-a e volta a ela sempre que sente que a troca vale a pena. O futuro favorece quem tem propósito vivido, não apenas declarado e aqui as marcas de fabricante têm vantagem histórica, emocional e estrutural.

Portugal não está condenado a ser um mercado de marca própria. Pelo contrário: se as marcas assumirem o lugar que lhes cabe - com estratégia, clareza, inovação e voz própria - conseguirão reverter esta tendência que se vem vincando nos últimos anos. O consumidor está mais cauteloso, mas também mais selectivo. E quando a exigência sobe, ganham as marcas que provaram valor.