ALMA DE MARCA
Ideias e Reflexões #paramarcasquemarcam
Economia
O NOVO ‘EU’: MAIS ESTÁTICO, MAIS DIGITAL, MAIS INFELIZ
Esta crise está a provocar profundas alterações nas vidas de todos nós, na nossa forma de viver, de estar, de comprar ou de consumir.
TAGS

Já quase não faz sentido estar a enumerar as áreas em que cada um de nós, as nossas famílias, as nossas atividades ou as nossas empresas, foi impactado.

Alguns desses impactos foram sentidos de imediato, outros vão-se manifestando e ganhando importância à medida que o tempo passa e este período de lockdownse alarga. Muitos outros, nesta altura, apenas se vislumbram, mas qualquer análise séria mostra que são muitos os riscos e os perigos que esta crise provoca e Estado, Empresas, Famílias e cada um de nós, individualmente, tudo deverá fazer para que esse futuro carregado que por estes dias se antecipa, seja o menos negro possível.

No quadro da Centromarca temos vindo a acompanhar ao minuto os impactos deste temporal nas marcas e nos mercados, no consumo e nos consumidores, que somos todos nós e focamo-nos em especial no sector do chamado grande consumo, porque é aquele onde essencialmente trabalhamos. Estamos a ser não apenas um farol e uma central de informação para os nossos associados e o sector, mas também uma fonte de informação e de opinião para o mercado e para a opinião pública.

Tentamos, ao longo destas semanas, tranquilizar o consumidor relativamente ao acesso aos bens mais prioritários, chamar a atenção para o trabalho de retaguarda que fornecedores e toda a cadeia de aprovisionamento nunca pararam de realizar para tornar as nossas vidas mais facilitadas, chamar a atenção para o compromisso e a responsabilidade social das empresas neste momento tão delicado, apelar a um regresso responsável mas célere à normalidade possível. Tentamos, acima de tudo, demonstrar que as marcas são nossos verdadeiros companheiros de viagem, nos bons e nos maus momentos.

De forma muito sintética, constata-se – ao dia de hoje – que o comportamento do sector do grande consumo tem sido globalmente positivo no meio de todo este turbilhão provocado pelo coronavírus. Mas é também fácil perceber que nem tudo são rosas. A pressão de um consumo ‘confinado’ colocou muitas dificuldades e custos adicionais a produção, transformação, logística e retalho. Muitos dos produtos que se converteram, nesta fase, em verdadeiros campeões de vendas, são produtos de baixo valor e escassa rentabilidade. Muitos desses produtos foram stockados quase até à exaustão, significando que os consumidores não os voltarão a comprar senão daqui a muitas semanas. Muitos outros, nesta fase, abandonaram radicalmente as cestas de compras das famílias portuguesas.

O canal Horeca a exemplo do que aconteceu com o fenómeno do turismo foi, desde o início de Março, reduzido praticamente a zero e todos sabemos da sua importância para o nosso sector e para a economia do país e, para além das não vendas, acarreta um risco brutal de atrasos e incumprimentos a nível de tesouraria. E mesmo o período de ‘compra pandémica’ foi em Portugal muito mais curto – não mais de duas semanas – do que o verificado noutros países vizinhos. O confinamento motivou ainda muitos consumidores a recorrer à compra online e a utilizar outras formas menos usuais de retalho, como é o caso de muitas lojas de comércio tradicional que têm sentido, nesta fase, um movimento inusitado.

Mas se é importante construir o retrato do que é a nossa realidade, hoje, mais relevante é perspetivar o dia seguinte, do regresso a uma progressiva e possível normalidade. E esse day afterestá condicionado pela evolução da situação sanitária, seja pelo que ela implicará em termos de desconfinamento, seja pelo que ela obrigará ao nível dos cuidados a ter em termos proteção individual. Mas a saúde, até pelo comportamento consciencioso dos cidadãos e pela resposta positiva do sistema, pode até converter-se num dinamizador da confiança da economia e do consumo e num trunfo na reconquista duma posição de relevo de Portugal como destino turístico.

A situação sanitária introduz constrangimentos à mobilidade, mas gera também receios na população que a auto-obriga a reduzir as suas movimentações e, obviamente, uma mobilidade limitada, seja por imposição administrativa, seja por nos sentirmos motivados para tal, funcionará sempre como um factor de inibição a um mais rápido regresso à normalidade.

A situação sanitária empurra-nos para uma ainda mais rápida digitalização das nossas vidas, com implicações nas comunicações, na organização do trabalho, na reorganização das nossas vidas em casa, combinando profissão, ensino e lazer ou no acto de compra e isso gerará ao nível de serviços dos operadores de telecomunicações, na disponibilidade de equipamentos, na relação entre colaboradores e empresas ou, até, na organização das operações logísticas. A supply chaintem sido objecto de uma pressão brutal, pela reorganização e redireccionamento das operações que obrigou, mas se há algo que parece incontornável é a necessidade de investimento e desenvolvimento na infraestrutura de distribuição capilar, incapaz, nesta altura, de responder ao movimento das pequenas entregas, uma a uma, nas nossas casas.

Os operadores ao longo de toda a cadeia estão conscientes que saúde, mobilidade, digitalização e supply chaininterferem, obviamente, no funcionamento do mercado. Um mercado que terá de enfrentar quebras substanciais no rendimento disponível das famílias e o forte impacto desta crise no futuro do turismo e do canal horeca. E as marcas sabem que menos visitantes e rendimentos disponíveis menores afastarão os consumidores de valores que se vinham nos últimos anos recuperando, como diversidade, personalização ou experiência de compra, regressando-se a uma competição especialmente assente nos preços. Mas, apesar disso, devem fazer um esforço para não abdicar do investimento naqueles que são os seus elementos mais diferenciadores: a inovação e a comunicação.

Todos nós estamos, nestas últimas semanas, a enfrentar dias menos bons, dias que são uma prova de esforço e de resistência. Foram-nos gerados medos que demorarão a ser racionalizados e ultrapassados. Cada um de nós foi obrigado, repentinamente, a reorganizar a sua vida, sendo conduzido para um conjunto de comportamentos, até aqui, atípicos. Estou convencido que os nossos comportamentos - nesta altura - de dinâmica familiar, de organização de tarefas ou de consumo não configuram ainda a consolidação de um qualquer ‘Novo EU’, mas apenas aos comportamentos ‘normais’ de uma situação de contornos anormais.  Mas há, estou certo, muitos gestos e ações, mais pequenos ou maiores, que se tornarão normais e nos tornarão diferentes quando voltarmos à tal nova normalidade.

Ainda assim, os próximos tempos adivinham-se muito cinzentos, menos animadores e otimistas do que o que vínhamos sentindo até à eclosão desta crise e que cada um de nós, pelo menos no curto e médio prazo, irá estar mais estático, ser mais digital e sentir-se menos feliz.

Originalmente publicado no site do Observador em 2020.04.30