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O FUTURO FOI ONTEM?
Na última semana de julho, o primeiro-ministro António Costa deixou para trás o processo de desconfinamento por fases e anunciou o programa de ‘libertação’ do jugo pandémico e de regresso à normalidade em Portugal.
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Na última semana de julho, o primeiro-ministro António Costa deixou para trás o processo de desconfinamento por fases e anunciou o programa de ‘libertação’ do jugo pandémico e de regresso à normalidade em Portugal.

Parecia claro há já alguns meses e, muito em especial, desde que o processo de vacinação acelerou, que mais do que ‘exterminar’ o vírus ou esperar pelo ‘risco zero’, a reabertura da vida social e económica teria que passar por controlar os impactos da pandemia ao nível da resposta dos sistemas de saúde e saber conviver, ainda que de forma prudente, com a doença, a exemplo, aliás, do que acontece com tantas outras.

Parecia também claro que não era possível continuar permanentemente a insistir nas mesmas ‘receitas’ para combater a pandemia, sempre em desfavor das mesmas pessoas, das mesmas empresas e dos mesmos sectores de actividade. Para além do mais, o cansaço, a alteração repetida, repentina e muitas vezes pouco coerente das regras, a descrença na respectiva eficácia e um controlo muito ‘amostral’ de implementação por parte das autoridades responsáveis, tornaram muitos de nós numa espécie de ‘cumpridores qb’ das obrigações impostas pelo Estado.

Igualmente na última semana de julho, a conceituada consultora de mercado Kantar divulgou a sua habitual análise sobre a evolução dos comportamentos de compra e dos consumidores na área do grande consumo, em complemento dos dados de mercado para o primeiro semestre do corrente ano.

E ao fim de quase ano e meio de pandemia alguma da informação divulgada parece mostrar que a dinâmica dos próximos períodos nos estará a conduzir, mais do que ao regresso ao futuro, ao retorno a um passado não excessivamente distante.

É verdade que um comportamento repetido num período relativamente alargado de tempo se converte rapidamente numa rotina. É verdade que a pandemia gerou alguns hábitos novos de consumo e introduziu certos novos produtos nas nossas listas de compras. É verdade que, à boleia da doença, a digitalização e a desmaterialização sofreram uma fortíssima aceleração.

Mas é também verdade que o regresso à normalidade que tanto desejamos, corresponde a isso mesmo, ao regresso a muitos dos padrões de vida, mas também de compra e de consumo, que seguíamos antes da eclosão da pandemia.

Se há uma crise económica cuja factura iremos dolorosamente pagar durante anos, se há consequências psicológicas que teremos que suportar durante um longo período, se há feridas várias geradas pela doença que demorarão o seu tempo a sarar, é também verdade que, para desconsolo de muitos, em amplas áreas o Novo Normal se tenderá a assemelhar fortemente com o Velho Normal.

No universo do grande consumo, alguns desses sinais são indesmentíveis…

Por exemplo, as rotinas de compra são cada vez mais próximas das da pré-pandemia: visitas mais frequentes às lojas, com, obviamente, cestas mais pequenas; compras distribuídas por mais supermercados e não tão concentradas em função de padrões mais rígidos de mobilidade; mais procura de produtos em promoção, significando visitas mais longas às lojas; regresso de muitos consumidores às lojas de maior dimensão. Tudo sinais de uma maior liberdade de movimentos e de que, para a ampla maioria dos consumidores, as lojas do retalho moderno não se constituem como um local de risco acrescido.

A isto soma-se o regresso paulatino ao consumo fora-de-casa. A reabertura da restauração, mesmo que constantemente afectada por limitações mais ou menos extravagantes e pela debilidade do turismo estrangeiro e ainda que fortemente canalizada para as esplanadas e para o recurso a serviços de take-away e delivery, transfere consumo de dentro para fora de casa e tende a diminuir a compra no retalho alimentar.

Acresce a notória desaceleração da compra online dos produtos de supermercado, natural face ao aumento do espectro de mobilidade de grande parte dos consumidores e à multiplicação do seu número de visitas às lojas físicas. Julgo que a compra digital veio para ficar, se tornará rotineira - pela sua conveniência - para grupos crescentes de consumidores, mas o impulso gerado pelos períodos de confinamento tende a perder tracção com a recuperação da mobilidade.

Indica a referida análise da Kantar que com o avanço do processo de vacinação resta o imobilismo gerado pelo teletrabalho como o derradeiro obstáculo à reposição da relação entre o consumo dentro e fora de casa e acrescenta que é no grupo de consumidores em situação de reforma que se sente uma menor recuperação da ‘normalidade’ do consumo. Parece, pois, que com as regras de ‘libertação’ recentemente anunciadas pelo Governo, o cenário de reposição do Velho Normal fica praticamente completo e que os impactos no grande consumo, a partir daqui se associarão essencialmente aos efeitos da crise económica e da evolução do turismo externo que irão condicionar o mercado no último quadrimestre deste ano e em 2022 e não tanto às consequências directas da pandemia.

Uma nota a fechar: também na última semana de julho, os dois mais importantes grupos nacionais do retalho alimentar apresentaram os seus resultados semestrais, com um crescimento de vendas de 5,4% no semestre (e 4,4% no 2.º trimestre), no caso da Sonae MC, e de 4,6% no semestre (e de 10,1% no 2.º trimestre) para o Pingo Doce, o que compara - de acordo com os mais recentes dados da Nielsen - com um crescimento total do mercado no semestre de 2,7%. Por isso, também aqui, a normalidade regressou.

Mais surpreendente terá sido o anúncio da venda de 24,99% da Sonae MC ao fundo de ‘private equity’ CVC Strategic Opportunities, sediado no Luxemburgo, por um montante que valoriza a retalhista nacional em quase 2,4 mil milhões de euros e mais inusitado o anúncio do grupo Jerónimo Martins de que terá disponível um valor superior a mil milhões de euros para investir em aquisições, notícias que demonstram também que devemos somar agitação à normalidade a que regressamos.

Pedro Pimentel

Originalmente publicado na Revista Grande Consumo em 2021.08.04