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AS TEMPESTADES NUNCA SÃO PERFEITAS
Titulava o Inevitável na passada sexta-feira que “A crise [está] iminente na indústria”. Na véspera, a revista Sábado ocupava toda a sua capa, de forma chamativa, com um “Lojas vazias.
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AS TEMPESTADES NUNCA SÃO PERFEITAS

Titulava o Inevitável na passada sexta-feira que “A crise [está] iminente na indústria”. Na véspera, a revista Sábado ocupava toda a sua capa, de forma chamativa, com um “Lojas vazias. Preços disparam. Natal ameaçado”, enquanto dias antes o ECO referia “A Tempestade Perfeita: sem matérias-primas, sem energia e sem contentores”.

As tempestades, como outros fenómenos naturais, podem ter uma estética própria. Inclusive uma beleza algo tétrica. Podem até ter efeitos regeneradores posteriores e ser a razão de inovações e oportunidades subsequentes. Mas nunca são perfeitas…

Os impactos gerados pelo Covid-19 não estão ainda totalmente absorvidos e, nalguns casos, nem sequer integralmente compreendidos. O confinamento inédito de milhões e milhões de pessoas e a paralisação de uma parte substancial da economia terá efeitos que demorarão anos até serem totalmente ultrapassados.

Ao contrário de tempestades, terramotos, tsunamis ou erupções vulcânicas, a pandemia não provocou a destruição de meios de produção e de infraestruturas e isso gerou uma forte convicção de que ultrapassada a crise sanitária a economia recuperaria rapidamente e várias consultoras – depois das célebres discussões sobre o formato da curva de recuperação – avançaram com previsões de um crescimento económico mais ou menos fulminante, até como resultado da acumulação de reservas financeiras geradas pela própria crise.

Hoje, no universo empresarial, a pandemia já é passado e os mais sérios problemas que estão a ser enfrentados são aqueles que – de forma mais ou menos exacerbada – os títulos acima reflectem. A fortíssima disrupção das cadeias de abastecimento e os impactos que se sentem já e aqueles que se antecipam. Nas operações logísticas, na produção, na indústria, no comércio, no consumo.

Pessoalmente, tive sempre a convicção de que o impacto da crise seria directamente proporcional à sua duração. Quanto mais longo, mais fundo…

Logo nos primeiros dias do primeiro confinamento, ainda em Março de 2020,  recordo-me de escrever um texto que intitulei “O Coronavírus e a Teoria do Uso e do Desuso”, no qual referia que “importa ter a noção de que quanto mais longa for esta paralisia, mais profundos serão os seus impactos, porque quando (e como) reabrir, toda a nossa vida, a começar pela área económica, vai sentir os mesmos efeitos que cada um de nós sente quando passa umas horas largas aninhado num sofá… dificuldades a desdobrar-se, joelhos a ranger, pés dormentes, alguma falta de equilíbrio. E foram apenas umas poucas horas. Num sofá. Na economia não é diferente…

E adicionei um episódio com o qual pretendia ilustrar o sentido dessas palavras: “Há uns anos largos, quando trabalhava no sector lácteo, conheci e tive uma excelente relação com os responsáveis de uma empresa que tinha uma unidade de produção muito razoável, produzia produtos de boa qualidade que tinham uma razoável aceitação no mercado. Tinha, para além disso, um cuidado extremo com tudo o que dizia respeito a higiene e segurança e a manutenção dos mais ínfimos detalhes era diariamente cuidada.

Fruto de um conjunto de investimentos desajustados e vivendo algumas das vicissitudes típicas de muitas das nossas empresas familiares, a empresa enfrentou uma série de problemas financeiros, que clientes oportunistas, fornecedores hipócritas e uma banca alheada, empurraram para uma rápida falência.

A unidade de produção foi encerrada. Mas, como disse, estava bem equipada (e com equipamentos muito recentes), tinha um layout muito adequado e marcas que ainda soavam na cabeça dos consumidores, pelo que gerou alguma cobiça de empresas do sector (nacionais e estrangeiras) e de alguns outros interessados, motivados pela possibilidade de vender equipamentos e valorizar o património.

Fruto dos muitos contactos que tinha, uma das empresas estrangeiras interessadas chegou á minha fala e pediu-me para contactar quem de direito por forma a possibilitar-lhes uma visita à fábrica. Assim fiz e, por uma questão de cortesia, acabei por acompanhá-los nessa visita, que ocorreu precisamente 7 meses depois da data do fecho. E quando entrei, confesso, até as lágrimas me vieram aos olhos. As máquinas tinham ferrugem, os tectos tinham amplas manchas de humidade, havia teias de aranha em quase todos os sítios, os vidros estavam partidos e havia penas e dejectos de pássaros espalhados por todo o lado… apenas sete meses depois!

Uma comprovação empírica da chamada Teoria do Uso e do Desuso e é o que acontecerá com a nossa economia (e com a economia de outros países) se esta crise se prolongar”, escrevia então.

Já em Abril último, logo após a reabertura da restauração lembro-me também de ir a um restaurante de que sou cliente habitual. Um restaurante normalmente com enorme movimento e em que uma pequena equipa de cozinha e de sala dá, de forma excelente, sempre conta do recado. Nesse dia ainda eram poucos os comensais, mas – apesar disso – o serviço estava perro, os pedidos demoravam a sair da cozinha e, no final, em jeito de desculpa, o dono dizia-me que tinham regressado, mas que parecia que na cozinha as batatas demoravam mais a descascar e na sala os funcionários se tinham esquecido onde se guardavam os guardanapos e os talheres.

De forma, obviamente redutora e caricatural, é um pouco isso que ajudou a gerar a crise que estamos a viver ao nível das cadeias de abastecimento. Foi um período longo de paralisia, de alteração de rotinas e de fluxos de produtos, de uma planificação ditada pelas exigências do dia-a-dia e menos focada no médio-longo prazo… empurrada também por outros fenómenos conjunturais que geraram escassez de certos produtos e matérias-primas.

Mas mais do que as quebras das produções na origem ou o incremento do consumo no destino, foram o enferrujamento e a inclinação a oriente da cadeia logística que estarão a provocar os maiores estrangulamentos e a gerar as maiores dificuldades na produção e abastecimento dos produtos, a motivar o encarecimento dos transportes, a impulsionar as cotações energéticas, a gerar uma crise na cadeia de abastecimento, sem precedentes nem um horizonte antecipável de resolução. Recordamos rotas e voos que foram durante meses desactivados, infraestruturas que foram reduzidas ou inactivadas, meios de transporte que estiveram estacionados…

Compete às autoridades públicas, nacionais e internacionais, e às entidades reguladoras, mas, acima de tudo, cabe agora às empresas e ao ecossistema logístico fazer aquilo que melhor sabem… introduzir eficiência nos processos, trazer novamente fluidez aos fluxos, gerar novos equilíbrios entre oferta e procura que voltem a colocar cotações e preços em valores menos exorbitantes, reintroduzir a economia nos carris.

Gerar a bonança depois da tempestade.