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Opinião
AS LEIS E OS HOMENS
Não tendo formação académica na área de Direito, mas sendo obrigado a lidar diariamente com um amplo acervo legislativo e com a sua aplicação no dia-a-dia...
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Não tendo formação académica na área de Direito, mas sendo obrigado a lidar diariamente com um amplo acervo legislativo e com a sua aplicação no dia-a-dia, tenho – julgo - uma posição privilegiada para analisar essa intersecção crítica entre a legislação e a prática, entre as Leis e os Homens.

De uma forma lata e um pouco utópica, as Leis deveriam definir regras simples de interacção para um universo de indivíduos que convive em sociedade, criar um padrão básico de conduta, estabelecer um conjunto harmonioso de deveres e de direitos, dinamizar um entorno civilizacional, obrigar aos comportamentos estritamente necessários a uma adequada convivência social no tempo e no espaço, condenar as acções que não sejam consideradas como aceitáveis face àquele padrão civilizacional.

Porque as sociedades são dinâmicas, porque o conhecimento evolui, porque o padrão civilizacional está em constante mutação, porque o Homem muda, as Leis têm - elas próprias – que evoluir e mais do que pretender ser uma forma de redesenhar, idealisticamente ou ideologicamente, o mundo em que vivemos, devem não deixar escapar a realidade e adaptar-se às alterações estruturais que vão ocorrendo. Em boa verdade, as Leis deveriam ser uma consequência, nunca uma causa. Deviam resolver ou dirimir um problema da Sociedade, nunca criar um problema na Sociedade.

Contudo, décadas sucessivas de enfraquecimento das elites políticas, minadas pelo afastamento (e alguma falta de espírito de serviço) dos mais bem preparados, pela hipocrisia que rodeia as remunerações dos cargos de governação e outras funções políticas, pelos escândalos de corrupção ou pela ascensão de figuras sem qualquer ‘vida’ para lá da política, retiram poder a quem rege os nossos destinos e critério e legitimidade à função legislativa.

Governações que desde o primeiro dia fazem o exercício da Rainha Madrasta, perguntando-se a todo o momento: ‘espelho, espelho meu, há alguém mais popular do que eu’, concentram a sua capacidade de resolução dos problemas em dois instrumentos-base: o dinheiro e as alterações legislativas avulsas.

Assim, face a qualquer fenómeno negativo que ocorra, há uma preocupação imediata de identificar um suposto culpado para quem se possa sacudir a responsabilidade e de anunciar, a grande velocidade, que há um ‘cheque’ de uns quantos milhões para resolver o problema e/ou vai ser feita uma alteração à legislação em vigor que impedirá que tal venha a ocorrer no futuro. E deixamos, entretanto, a ‘política’ nas mãos de forças populistas e mais ou menos extremistas, cuja prova de vida se faz pelo constante agendamento de causas fracturantes ou trogloditas.

Estas constantes ‘diarreias’ legislativas são, em si mesmas, um factor gerador de uma qualidade débil dos diplomas e de dificuldade de percepção e adaptação por parte dos seus destinatários. Promovem, quantas vezes, alterações a diplomas cujos impactos não foram ainda avaliados e não cuidam de como, na prática, a respectiva implementação ocorrerá, com indefinição ou escassez de recursos de quem os monitoriza e fiscaliza ou mesmo sem a pré-identificação da capacidade de actuação que existe no seio da própria administração para garantir que os objectivos preconizados são alcançados.

Por dificuldade de acompanhamento, por vontade objectiva de aproveitar as ‘brechas’ oferecidas ou porque aos dois berros do Pai Estado não corresponde a necessária punição quando as ‘crianças’ não se sabem comportar, nem sempre ‘boas’ leis correspondem a uma melhor convivência em sociedade e a uma sociedade mais justa.

Proliferam os comportamentos no ‘extremo-da-legalidade’, as práticas de ‘engenharia financeira e fiscal’ e faz escola o princípio do que não é proibido é permitido.

Há dias, face ao escândalo da cedência de dados pessoais de cidadãos que protestaram em Portugal contra determinados regimes estrangeiros aos serviços desses mesmos países, apressaram-se altos responsáveis do país a afirmar que se teria que alterar a lei em vigor (aparentemente de 1974), assumindo-se, pois, que os autores dessa cedência o fizeram, porque não era proibido fazê-lo.

Também na nossa economia se multiplicam comportamentos altamente reprováveis, eticamente deploráveis, mas sempre sancionados por uma lei que não foi regulamentada, um diploma que contém alguma vírgula que lhe confere um tortuoso sentido dúbio, porque são introduzidas disposições a pedido ou à medida ou porque um diploma é antecipadamente aprovado ou, mais vulgar, atrasado na sua elaboração ou produção de efeitos para permitir uma série de maldades no entretanto.

Assim, se queremos um Portugal melhor, valerá a pena não estar permanentemente a solicitar ‘dinheiro’ ao Estado, ao género de neve carbónica para apagar incêndios, sendo que esse dinheiro não sai de nenhuma impressora que cuspa notas, mas sim e sempre dos bolsos de alguém, com direcção aos bolsos de alguém, por mais legítimo que seja o incêndio que se pretende apagar. Nem, a cada ‘espirro’, confortar consciências com uma apressada e casuística mudança da legislação.

Se queremos um Portugal melhor faz sentido, isso sim, que se exija ao Estado que cumpra séria e eficazmente as suas funções. Na educação, na saúde, na justiça. E que o faça também ao nível da produção legislativa.

Se queremos um Portugal melhor devemos exigir menos Leis mas melhores Leis. Leis objectivas e consequentes. Leis fiscalizáveis e fiscalizadas. Leis antecipada e participadamente pensadas. Leis que nos coloquem no pelotão da frente não dos países com os diplomas mais ‘avançados’ ou com os códigos jurídicos mais volumosos, mas no dos países com um contexto legal mais objectivo e equilibrado.

Leis que – isso sim - permitam ao país avançar em termos de eficiência, qualidade de vida e produção de riqueza.

O resto é apenas ruído e diarreia.

Pedro Pimentel

2021.06.17