O sector do grande consumo habituou-se a navegar em mar agitado. Nos últimos anos, enfrentou uma sucessão de choques que alteraram profundamente a forma de produzir, distribuir e consumir: pandemia, inflação, custos energéticos voláteis, rupturas logísticas e mudanças estruturais no comportamento dos consumidores. Aquilo que antes era excepção é hoje rotina. Operar com incerteza deixou de ser ameaça e passou a ser método.
Mas esta nova realidade não eliminou um dos traços mais persistentes do debate europeu: a tensão entre regulação, desregulação e maturidade de mercado. E poucos sectores ilustram tão bem esta contradição como o grande consumo: um ecossistema altamente competitivo e globalizado, mas onde persistem assimetrias de poder que exigem escrutínio. No fundo, queremos mercados mais abertos, mais eficientes e mais inovadores, mas queremos também cadeias de abastecimento mais justas e mais protecção contra práticas inadequadas.
É neste contexto que surge um repetido dilema - melhor regulação ou o combate ao excesso de regulação, muitas vezes ‘capa’ de um desejo de desregulação - que continua a marcar a discussão pública. A verdade é que se trata de um falso dilema. De um lado, há críticas ao excesso de leis e de burocracia, do outro, queixas de falta de regras ou de insuficiente capacidade de enforcement. E há argumentos válidos nos dois campos. Temos muitas normas, mas nem sempre coerentes. Muitas leis, mas também demasiadas zonas cinzentas. Várias estruturas de fiscalização, mas com meios limitados (e diferentes níveis de sofisticação) face à escala dos desafios.
A maturidade de mercado não significa ausência de regras, mas sim regras proporcionais, claras e executáveis. Mais do que legislar mais, é urgente regular melhor, com previsibilidade e proporcionalidade e com foco económico e não apenas burocrático e administrativo. Em suma, o mercado, mais do que de mais leis, precisa de melhores leis, de coerência, de confiança e de enforcement eficaz, valendo sempre a pena recordar a velha frase de que quem não deve, não teme.
A evolução do combate às práticas comerciais desleais é um bom exemplo de como a regulação pode ser ajustada para responder às falhas reais do mercado. O novo regulamento europeu UTP Cross-Border, agora objecto de acordo político entre Conselho, Comissão e Parlamento Europeu, vem acrescentar à Directiva de 2019 algo que faltava: a capacidade de actuação transnacional.
Cria mecanismos de assistência mútua entre autoridades, abre a porta a investigações conjuntas em casos que envolvem vários Estados-Membros e estende a protecção aos fornecedores europeus mesmo que o comprador esteja localizado fora da UE. Num mercado onde as cadeias de abastecimento são cada vez mais globais, este reforço era indispensável. E ainda que não seja tão ambicioso como gostaríamos, este diploma é assertivo, regulando onde o mercado sozinho não conseguia garantir equidade
Mas nenhuma lei, por melhor desenhada que seja, cumpre os seus objectivos sem fiscalização eficaz. Enforcement não é uma nota de rodapé da legislação, é o elo que liga regras ao seu impacto real. O objectivo não é punir por punir, mas prevenir, equilibrar e orientar. E mesmo a ausência de multas e processos não significa forçosamente ausência de problemas. Por vezes significa que as regras estão a gerar efeitos dissuasores e pedagógicos. Outras vezes que os penalizados se sentem constrangidos na apresentação das suas queixas. O que se exige é um enforcement constante, previsível e inteligente, capaz de actuar antes que os desequilíbrios se cristalizem e de manter uma presença visível no mercado. Afinal, enforcement não é castigo, é um factor essencial na construção da confiança.
A revisão da Directiva das Unfair Trading Practices que ocorrerá em 2026, insere-se nesta lógica de aperfeiçoamento contínuo. A directiva trouxe transparência e equidade às relações entre fornecedores e distribuidores, e Portugal já tinha, recorde-se, construído um património legislativo sólido com as PIRC, assente no princípio de fairness for all.
A evolução do mercado português demonstra isso mesmo: mais diálogo, mais responsabilidade e menos práticas opacas, mesmo sem uma avalanche de denúncias ou coimas. Por isso, a revisão europeia deve preservar o equilíbrio alcançado e melhorar onde faz sentido: protecção reforçada do fornecedor, mais clareza sobre práticas proibidas (incluindo o tema das cópias parasitárias, que merece maior densificação legal) e mecanismos de execução mais eficazes. Como em tudo, o sucesso de uma lei mede-se pela mudança que provoca, não apenas pelo número de coimas que gera.
Outro tema quente do debate europeu o das chamadas Territorial Supply Constraints. Muitas vezes, a discussão é simplificada ao extremo, retratando o fabricante como quem cria barreiras artificiais. Mas a realidade é mais complexa: custos logísticos distintos, diferentes contextos fiscais, preferências culturais, regras de rotulagem divergentes, para além, claro, de margens comerciais amplamente desiguais entre mercados (e entre produtos e marcas) e até preços de MDD de um mesmo retalhista profundamente diferenciados entre geografias.
Pretender uniformizar um mercado estruturalmente diverso é uma ilusão. O mercado interno não precisa de ser uniforme; precisa de funcionar com diversidade e transparência. E esta discussão tem de ser feita em articulação com outras matérias críticas, como o geoblocking, a actuação das plataformas digitais e a defesa das marcas nesses ambientes. É por isso que faz sentido reafirmar que a diversidade não é uma falha do mercado, bem pelo contrário é, de facto, a sua força vital.
Paralelamente, assistimos à expansão acelerada das European Retail Alliances estruturas que, potencialmente. podem gerar eficiências importantes, mas que também criam riscos significativos quando passam a desempenhar um papel dominante nas negociações. A questão não é travar estas alianças, mas garantir que a cooperação não se transforma em concertação e que o ganho de escala não resulta em perda de diversidade ou em pressão excessiva sobre a cadeia de aprovisionamento.
Portugal tem dado sinais de maturidade, mas o contexto está a mudar rapidamente, com a multiplicação de operadores a operar no nosso mercado no seio dessas alianças, com operadores integrados simultaneamente em múltiplas alianças e com processos negociais cada vez mais exigentes. Cabe às autoridades, da concorrência e da fiscalização económica, assegurar que as condições impostas são equilibradas, que novas exigências implicam novas contrapartidas e e que o bloqueio na aquisição não se transforma numa arma comercial recorrente. Afinal, o futuro não é de quem tem mais poder de compra, mas de quem gera mais valor partilhado.
Tudo isto confirma que o sector do grande consumo está a entrar num novo equilíbrio. Entre regulação e liberdade, entre concorrência e cooperação, entre escala e diversidade. Mercados maduros não podem tolerar abusos de dependência económica, mas também não devem sufocar a capacidade de inovar e competir. A protecção regulatória não deve ser um travão, mas uma condição mínima para mercados previsíveis, funcionais e sustentáveis. E é também, cada vez mais, um tema reputacional: investidores, reguladores, parceiros e consumidores observam atentamente como marcas e retalhistas tratam os seus clientes e fornecedores.
A UE está a aproximar-se, ainda que lentamente, de um modelo estruturado em que regras claras e enforcement eficaz sustentam relações equilibradas e previsíveis e não apenas um somatório, mais ou menos alargado, de intervenções correctivas.
E é isso que permitirá construir um mercado verdadeiramente integrado, competitivo e justo, um mercado que funciona porque é confiável, não porque é desregulado. No fim, procuramos todos o mesmo: um ecossistema aberto, inovador e sustentável, onde as relações são equilibradas e as oportunidades são partilhadas.
E talvez por isso faça sentido recordar que, em última análise, o que constrói confiança e valor duradouro não é a rigidez das regras, é a maturidade dos que as cumprem.
