Um dos aspectos mais curiosos revelados pelo Barómetro do Turismo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, recentemente publicado, é esta espécie de paradoxo permanente: os portugueses reconhecem que o turismo é essencial para a economia, mas, quando passam da visão macro para o quotidiano, a percepção torna-se muito mais negativa.
O turismo surge como um suposto culpado do aumento do custo de vida, da pressão sobre a habitação, das filas, do ruído, da confusão. E não se trata apenas de casos extremos em Lisboa ou no Porto… a leitura é transversal, ainda que mais acentuada nos territórios de maior exposição.
O curioso é que estas percepções convivem com outra realidade, menos evidente para muitos residentes, mas muito relevante para quem trabalha com marcas, consumo e distribuição: o turismo é uma das forças mais dinâmicas e mais transversais de criação de valor no universo FMCG.
E é aqui que entra o desfasamento. Porque, no debate público, quase tudo o que é visível pertence à esfera dos transtornos: as rendas que sobem, os apartamentos de alojamento local que substituem vizinhos, os cafés lotados, os transportes sobrecarregados. Ao invés, um dos lados positivos que nos toca mais directamente, aquele que acontece no linear, no acto de compra, na experimentação de produtos, na criação de ligação emocional às marcas, permanece quase invisível. Não gera manchetes, mas gera riqueza.
A verdade é que os portugueses subestimam sistematicamente o impacto positivo do turismo na economia e, em especial, no consumo interno, e fazem-no por três razões principais.
Primeiro, porque esse impacto está diluído: não se traduz num cheque directo, mas em actividade económica distribuída pelo país. Cada turista compra água, snacks, higiene pessoal, produtos de limpeza, bens de conveniência. Experimenta marcas portuguesas, conhece-as, leva-as consigo… literalmente ou na memória. É um consumo que acontece todos os dias, mas que não se vê da janela de casa.
Segundo, porque os benefícios são captados por cadeias de valor mais complexas do que aquilo que o residente comum observa. O turista que compra uma embalagem de leite, uma cerveja artesanal, um gel de banho ou um protector solar está, sem o saber, a contribuir para investimento, inovação, marketing, emprego qualificado e desenvolvimento industrial. Mas isto não é perceptível para quem está apenas preocupado, e compreensivelmente, com o preço dos bens essenciais.
Terceiro, porque existe um preconceito difuso: a ideia de que o turista consome apenas “coisas para turista”. E aqui entra uma das maiores distorções. O visitante consome essencialmente aquilo que o residente consome; apenas consome mais e com maior predisposição para experimentar. Por isso mesmo, o turismo é um amplificador de marcas. Não um consumidor paralelo, mas um multiplicador.
Os dados do barómetro mostram que a população reconhece o turismo como motor económico, mas não identifica com clareza os benefícios no rendimento das famílias ou na qualidade de vida local. E isso cria espaço para leituras que, sendo compreensíveis, nem sempre assentam em evidências.
O cidadão vê o preço de um bem a subir, mas não vê a cadeia de valor que beneficia directa e indirectamente. Desde o produtor ao transformador, desde a logística à distribuição moderna, desde as PME às marcas globais que operam em Portugal. E não vê também como esse valor acrescido reverte, de seguida, em seu próprio valor: em emprego, em salário, em expectativa, em investimento que prolonga essa cadeia.
Este déficit de percepção é particularmente relevante para o universo FMCG, porque as marcas vivem de confiança, de preferência e de experiência, e o turismo oferece essas três dimensões com uma intensidade que nenhum mercado doméstico conseguiria gerar sozinho. Quando um turista volta ao seu país com uma memória positiva de um produto português, essa memória transforma-se, muitas vezes, em procura futura, seja pela compra em viagens subsequentes, pela aquisição em mercados internacionais ou pela busca de equivalentes online. Esta dinâmica tem um valor económico real, ainda que não seja visível no imediato.
É também por isso que as marcas, e temos repetidamente insistido neste ponto, desempenham um papel determinante na reputação de Portugal enquanto destino moderno, confiável e competitivo. A percepção de qualidade dos produtos que um turista encontra num supermercado, num restaurante, num hotel ou num outro local de compra português contribui, silenciosamente, para a percepção global do país. Um destino onde se come e bebe bem, onde os produtos funcionam, onde a oferta é diversificada e moderna, é um destino onde se quer voltar.
Daí que seja necessário corrigir a narrativa dominante, que tende a reduzir o turismo a uma equação simplista entre benefícios macroeconómicos e transtornos locais. É preciso acrescentar a dimensão do consumo, da inovação e das marcas. É preciso explicar melhor que a economia não se limita ao hóspede que dorme num hotel, mas se estende ao supermercado onde faz compras, ao retalhista que abastece, ao produtor que fornece, à marca que investe, à fábrica que cria empregos e à experiência que se transforma em valor exportável.
Não se trata de negar os problemas, que são reais e exigem regulação, planeamento urbano e políticas públicas inteligentes. Trata-se de alargar o campo de visão, incluindo aquilo que o cidadão não vê, mas de que beneficia directa e indirectamente.
Se Portugal quiser continuar a ser um destino competitivo, tem de reconhecer que o turismo é mais do que dormidas e receitas hoteleiras… é também consumo qualificado, projecção de marcas, dinamização da indústria de grande consumo e um laboratório vivo para a inovação.
Quando ajustarmos a narrativa às evidências, talvez percebamos que parte das percepções negativas dos portugueses nasce menos de oposição ao turismo e mais da ausência de informação sobre os seus efeitos positivos, especialmente na economia real, no dia-a-dia e no ecossistema das marcas.
E quando esse debate começar a incluir o universo FMCG como deve ser incluído, estaremos finalmente a ver a fotografia completa e não apenas a metade que faz mais barulho.
