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SIMPLIFICAR SEM PERDER VALOR: O VERDADEIRO TESTE À NOVA ESTRATÉGIA PARA O MERCADO ÚNICO
Um Mercado Único mais forte exige regras mais simples, sim — mas também mais justas, mais proporcionais e mais fiéis à diversidade do tecido económico europeu e a sua Estratégia deve servir os objectivos da competitividade, da sustentabilidade e da c
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A Comissão Europeia apresentou recentemente uma nova estratégia para o Mercado Único, com o objetivo de simplificar regras, reduzir a carga administrativa e remover barreiras injustificadas que continuam a limitar a livre circulação de bens e serviços na União Europeia.

Esta iniciativa surge num momento crucial, em que o Mercado Único enfrenta pressões crescentes, tanto internas como externas, e em que o escrutínio político sobre as cadeias de abastecimento, os preços ao consumidor e as práticas comerciais nunca foi tão intenso.

A proposta da Comissão inclui medidas relevantes: a eliminação de barreiras consideradas especialmente prejudiciais pelas empresas; a modernização das regras aplicáveis aos serviços, como os setores da construção e da logística; a extensão de apoios a empresas de média dimensão ou a digitalização de processos administrativos.

Estas medidas são, em grande parte, bem-vindas. A fragmentação regulatória, a burocracia excessiva e a aplicação desigual da legislação continuam a ser entraves reais à competitividade das empresas na UE. A criação de um mercado interno mais coerente e eficiente é essencial para reforçar a resiliência económica da União e assegurar a sua autonomia estratégica em tempos de disrupção global.

No entanto, a eficácia desta estratégia dependerá, acima de tudo, da sua implementação concreta e da coerência das abordagens políticas adotadas. Importa assegurar que as soluções propostas assentam em diagnósticos técnicos sólidos, baseados em dados fiáveis e num entendimento rigoroso das dinâmicas económicas e legais que estruturam o funcionamento das cadeias de abastecimento europeias.

Um dos temas que promete maior controvérsia no quadro da nova estratégia é o das chamadas “restrições territoriais de fornecimento” (TSCs). Impulsionado por preocupações políticas relacionadas com o aumento dos preços dos alimentos e bens essenciais em alguns Estados-Membros — como a Holanda e a Grécia — este debate tem vindo a ganhar centralidade nas discussões sobre o funcionamento do Mercado Único.

A Comissão solicitou à Task Force de Fiscalização do Mercado Único (SMET) que examinasse esta questão, e responsáveis da DG COMP indicaram que o tema está a ser objecto da sua atenção. Contudo, importa distinguir entre práticas efetivamente restritivas do comércio, que podem configurar infrações às regras de concorrência da UE, e a diferenciação legítima de fornecimento baseada em considerações logísticas, legais, comerciais ou culturais.

Muitos dos exemplos citados como TSCs correspondem, na realidade, a práticas comerciais legítimas e comuns, como acordos de distribuição exclusiva, variações na composição de produtos adaptadas às preferências locais, adequação aos requisitos legais de rotulagem ou limitações de capacidade produtiva. Estes factores refletem as assimetrias reais existentes entre os mercados nacionais: diferenças de poder de compra, estrutura do retalho, obrigações legais e preferências dos consumidores.

Além disso, os argumentos frequentemente aduzidos contra as TSCs assentam, em larga medida, numa estimativa controversa apresentada num estudo da VVA de 2020, que aponta para 14,1 mil milhões de euros em prejuízos anuais para os consumidores. Uma análise crítica mais recente, conduzida pela NERA, identificou lacunas metodológicas muito relevantes nessa estimativa, incluindo a ausência de validação empírica e a sobrevalorização dos efeitos atribuídos a alegadas restrições territoriais.

A adoção de políticas públicas baseadas em estimativas não verificadas e em pressões de curto prazo tendem a colocar em risco a segurança jurídica das empresas e a lógica de funcionamento das cadeias de abastecimento. A imposição de regras genéricas que eliminem a possibilidade de diferenciação entre mercados pode gerar efeitos colaterais profundos: erosão da competitividade, desincentivo ao investimento local, riscos para a sustentabilidade das cadeias de valor e perda de empregos em regiões com estruturas produtivas de menor dimensão.

O Mercado Único não é — nem pode ser — um espaço homogéneo. A diversidade dos mercados nacionais da UE é uma realidade estruturante, que deve ser gerida com inteligência regulatória, e não ignorada em nome de uma uniformidade ilusória.

A diferenciação de fornecimento permite às empresas adaptar-se às exigências locais, cumprir obrigações legais específicas, optimizar a logística e responder de forma eficiente às preferências dos consumidores. É, para além disso, um factor de sustentabilidade: as cadeias de abastecimento integradas e descentralizadas permitem reduzir emissões, apoiar a produção local e reforçar a resiliência face a choques externos, como demonstrado durante a pandemia de COVID-19 e no actual contexto de instabilidade geopolítica.

A centralização desajustada do fornecimento, imposta por via regulatória, poderá comprometer a viabilidade económica de determinados modelos operacionais, com custos significativos para os consumidores, os produtores e os próprios objetivos de coesão social da UE. A externalização sistemática para países com menores custos de produção, motivada por pressões sobre os preços de cedência, pode colocar em risco empregos, receitas fiscais e desestruturar padrões sociais e ambientais.

A Centromarca e a European Brands Association (AIM) têm vindo a apelar à Comissão Europeia e aos Estados-Membros para que prossigam uma abordagem equilibrada, baseada em evidências robusta e no respeito pelo quadro legal existente. A legislação da UE já contempla, através das regras de concorrência, instrumentos adequados para lidar com as TSCs quando elas configuram práticas anticoncorrenciais. O que está em causa, neste momento, é assegurar uma aplicação uniforme e eficaz dessas regras, combatendo práticas comerciais desleais e assegurando um ambiente concorrencial justo para todos os actores.

Deve, pois, ser apoiada a utilização de ferramentas digitais como o Passaporte Digital de Produtos e a normalização de processos administrativos como medidas concretas para reduzir efectivos custos de conformidade, aumentar a transparência e melhorar a agilidade das empresas. Da mesma forma, é vista com bons olhos a intenção da Comissão de rever e modernizar legislação existente com base em critérios de proporcionalidade, clareza e aplicabilidade prática.

Por exemplo, a aplicação do novo Regulamento sobre Embalagens e Resíduos de Embalagens será um teste decisivo para a eficácia desta estratégia: requisitos como as instruções de triagem de resíduos devem basear-se em pictogramas simples e acionáveis, evitando versões específicas por país que aumentam a complexidade e os custos para as empresas e para o consumidor.

O fortalecimento do Mercado Único deve ser uma prioridade estratégica para a Europa. Mas este esforço não pode ser conduzido à custa da simplificação excessiva de realidades complexas, nem da penalização de práticas legítimas que asseguram o funcionamento eficiente das cadeias de abastecimento.

Um Mercado Único mais forte exige regras mais simples, sim — mas também mais justas, mais proporcionais e mais fiéis à diversidade do tecido económico europeu e a sua Estratégia deve servir os objectivos da competitividade, da sustentabilidade e da coesão, mantendo o equilíbrio essencial entre todos os intervenientes do ecossistema económico europeu.