O Programa do XXV Governo Constitucional apresenta-se como um documento de intenções reformistas, com um enfoque claro na modernização da Administração Pública, na reindustrialização da economia, na coesão territorial e na transição agroambiental. Para os sectores produtivos – e em particular para o universo do grande consumo – este novo enquadramento político-institucional traz desafios e oportunidades relevantes, que importa interpretar com cuidado e atenção.
A proposta de Reforma do Estado parece ser, em muitos aspectos, estruturante. Destaca-se a intenção de fortalecer o “Centro do Governo” e dotar a Administração Pública de competências internas para avaliação de políticas públicas, compras públicas estratégicas e digitalização de processos. Para as empresas, especialmente as que dependem de contratos públicos, licenciamentos ou interlocução constante com organismos do Estado, este esforço pode traduzir-se em ganhos reais de previsibilidade, prazos mais curtos e menor custo de contexto.
A promessa de desmaterialização transversal, interoperabilidade entre sistemas e utilização ética da inteligência artificial representa um passo necessário para alinhar Portugal com as melhores práticas europeias. Mas o verdadeiro teste estará na capacidade de execução e, sobretudo, na mudança de cultura administrativa: a digitalização e alteração de um modus operandi demasiado instalado só será conseguido se acompanhado por decisões mais rápidas, pela responsabilização das lideranças, por critérios mais claros e por maior escrutínio e accountability.
Uma área de governação menos visada pelos holofotes económicos, a Administração Interna tem, contudo, implicações directas no ambiente de negócios. A aposta anunciada na reorganização territorial dos dispositivos de segurança, proteção civil e emergência – sobretudo em territórios de baixa densidade – é relevante para cadeias logísticas, operação de armazéns, redes de retalho e gestão de risco físico e reputacional. Para o grande consumo, onde a confiança do consumidor e a continuidade operacional são bens críticos, a estabilidade e a modernização das respostas no território (desde o policiamento à resposta a incêndios) são factores silenciosos, mas determinantes, de competitividade.
Noutro ângulo, é muito relevante para a sociedade, mas também para a economia, a regulação, monitorização e fiscalização dos movimentos migratórios, bem como o seu acompanhamento e humanização. Um país carente de mão-de-obra, uma sociedade envelhecida e um mercado amorfo não dispensam a injecção de ‘energia’ de quem chega ao nosso país. Mas são também importantes as regras que permitam o seu controlo e que impeçam os excessos, os riscos de segregação e de organização em núcleos fechados e os perigos associados às redes de criminalidade muitas vezes conectadas com os fluxos migratórios.
A criação do Ministério da Economia e da Coesão Territorial é, em si mesmo, um sinal político: não há crescimento económico robusto sem integração territorial e vice-versa. O programa enuncia objetivos importantes para o tecido empresarial: revisão do IRC com foco em empresas exportadoras e tecnológicas, incentivos à reindustrialização, aceleração de licenças, e um novo fundo para deep tech e transição verde.
Importa, no entanto, sublinhar que os grandes operadores de consumo e distribuição beneficiam não só de estímulos à produção, mas também de uma rede eficiente de empresas de maior ou menor dimensão, infraestruturas logísticas regionais e um mercado interno coeso. Neste sentido, o sucesso da política de coesão será crítico para garantir abastecimento regular, diversificado e competitivo, num contexto europeu cada vez mais marcado por tensões nas cadeias de valor.
O desafio será especialmente de natureza executiva: a integração entre políticas industriais, fiscais, de regulação, de inovação e regionais exigirá governação interministerial eficaz, metas quantificadas e uma abordagem menos fragmentada na aplicação dos fundos europeus.
Finalmente, a tutela da Agricultura e Mar reflecte a importância estratégica destas áreas para a segurança alimentar, a sustentabilidade e o ordenamento do território. O sector agroalimentar é transversal ao grande consumo, não só pelo lado da produção, mas também pela estabilidade do fornecimento e pela resposta às exigências do consumidor em matéria de origem, certificação, bem-estar animal e pegada ambiental.
As medidas previstas no programa – desde o reforço da organização da produção, ao combate às práticas desleais na cadeia agroalimentar, à simplificação do licenciamento na aquicultura ou ao relançamento do investimento em regadio – são promissoras. A criação de um Portal Único da Agricultura e a aposta em pagamentos atempados podem representar ganhos operacionais tangíveis para produtores e transformadores.
Contudo, o verdadeiro impacto dependerá da capacidade de reduzir a fragmentação e imprevisibilidade que ainda marcam o setor primário em Portugal. Para o grande consumo, esta estabilidade é vital: sem matéria-prima de qualidade e sem competitividade, será muito mais difícil responder às expectativas do consumidor moderno.
Em síntese, o Programa do XXV Governo Constitucional oferece linhas orientadoras que vão ao encontro de muitas das preocupações das empresas do universo do grande consumo: previsibilidade fiscal, eficiência administrativa, ordenamento produtivo, competitividade regional e sustentabilidade.
Mas a transição da intenção para o impacto requer três ingredientes essenciais: estabilidade regulatória, que permita aos agentes económicos planear a médio e longo prazo, uma execução disciplinada das medidas preconizadas, com prazos, metas e avaliação independente e uma colaboração estruturada (e estrutural) com o sector privado, através de plataformas consultivas, pactos setoriais e pilotos regulatórios.
O universo grande consumo é simultaneamente (e reconhecidamente) um barómetro e um motor da economia nacional. Integrar as suas dinâmicas nas políticas públicas não é apenas desejável. É indispensável para garantir competitividade, crescimento inclusivo, inovação e soberania económica num contexto europeu cada vez mais exigente.