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O REI VAI NU?
Relatório Draghi corresponde a uma resposta às reclamações que o tecido empresarial europeu de há muito fazia.
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Na passada quarta-feira, quinze das principais associações empresariais europeias - entre as quais a AIM (de que a Centromarca faz parte), a BusinessEurope (que integra a CIP) e a FoodDrinkEurope (de que a FIPA é membro) - organizaram um evento para dar as boas-vindas aos novos Eurodeputados, que iniciam agora o seu mandato de cinco anos que se prolongará até 2029.

Estiveram presentes muitos parlamentares (entre os quais alguns eleitos portugueses), muitos quadros da Comissão Europeia, muitos membros das várias Representações Nacionais (REPER) junto da UE e, claro, inúmeros representantes daquelas associações empresariais e das empresas que as integram.

Foram bem mais de mil pessoas que passaram pela recepção que teve lugar nos jardins do Royal Belgium Institute of Natural Science, num evento ‘abrilhantado’ com a presença do Primeiro-Ministro da Bélgica, Alexander de Croo, e onde estiveram, também, alguns dos Comissários ainda em funções.

Como é natural e até porque o tema estava (e está ainda) bem fresco, grande parte das conversas acabou por se centrar no chamado Relatório Draghi, o documento eleborado pelo ex-primeiro-ministro italiano, focado na construção de uma estratégia para a competitividade europeia. 

Um documento que corresponde a uma resposta às reclamações  que o tecido empresarial europeu de há muito fazia. Um documento que, a levar em linha de conta as reacções que obteve, foi bem recebido por todos aqueles que defendem que a competitividade europeia tem vindo a perder espaço perante outros grandes blocos económicos e que o modelo social europeu apenas pode ser suportado se apoiado numa dinâmica de competitividade e de construção de riqueza que possa sustentar as exigências de uma sociedade cada vez mais activa e actuante, mais inclusiva e sustentável e, obviamente, mais ‘cara’.

O documento refere, logo no seu prefácio, que a Europa tem que se mostrar preocupada com o abrandamento do seu crescimento desde o início deste século e que, não obstante a tentativa de colocar em prática diferentes estratégias para redinamizar as suas taxas de crescimento, essas estratégias foram efémeras e, quase sempre, inconsequentes, deixando a tendência de baixo crescimento inalterada.

Em diferentes ângulos, abriu-se um amplo ‘buraco’ entre a UE e os EUA, em larga medida resultado de um abrandamento claro no crescimento da produtividade na Europa. Numa base per capita, o rendimento disponível efectivo cresceu quase o dobro nos EUA, relativamente à UE, desde 2000.

Por outro lado, refere igualmente o relatório,  os responsáveis políticos foram avaliando este arrefecimento da competitividade muito mais como um inconveniente e não como um verdadeiro perigo para o modelo económico europeu. Na verdade, naquele período empresas exportadoras europeias conquistaram espaço em mercados emergentes, a força de trabalho cresceu e tornou-se mais igualitária. Mesmo com as crises de 2008 e de 2011/2012, o desemprego desacelerou e, apesar de tudo, conseguiu-se manter um razoável nível de bem-estar social e, não menos importante, beneficiou-se, durante larga parcela deste quarto de século, de um ambiente global favorável e de mundo com uma geopolítica estável, não existindo, durante demasiado tempo, uma real preocupação com o aumento da dependência perante países com quem mantínhamos relações económicas razoavelmente pacíficas.

Contudo, como refere Mario Draghi, as bases em que construímos esse racional estão agora a ser fortemente abaladas. O paradigma global em que convivíamos está em implosão. A era do rápido crescimento do comércio mundial parece ter terminado, com empresas da UE a enfrentarem maior concorrência do estrangeiro, mais limitações impostas pelo contexto geopolítico, mais inibições de acesso aos mercados exteriores, em face da multiplicação de políticas protecionistas.

Por outro lado, a transição tecnológica está a acelerar rapidamente e, refere Draghi, a Europa perdeu em grande parte a revolução digital liderada pela Internet e os ganhos de produtividade que ela aportou. Por exemplo, o fosso de produtividade entre a União Europeia e os EUA é, em larga medida explicado, pelos diferenciais criados pelo sector tecnológico e apenas quatro das 50 principais empresas tecnológicas do mundo são europeias.

E o relatório não cessa de lembrar que a necessidade de crescimento da Europa está a aumentar, que a UE está a entrar no primeiro período da sua história recente em que o crescimento não será apoiado pelas dinâmicas demográficas e pelo efectivo aumento das populações e que em 2040, a força de trabalho deverá diminuir em cerca de 2 milhões de trabalhadores por ano. 

Mais do que volume, será a produtividade que deverá impulsionar o crescimento e se, por exemplo, a UE mantiver a sua taxa média de crescimento da produtividade, ao nível daquela que se verificou entre 2015 e 2024, isso seria apenas suficiente para manter o PIB constante até 2050, não respondendo às muitas novas necessidades de investimento que terão de ser financiadas através da riqueza gerada a partir de um maior crescimento. Basta pensar que apenas para digitalizar e descarbonizar a economia e aumentar a capacidade de defesa europeia, a quota de investimento na UE terá de aumentar 5 pontos percentuais do PIB e colocar-se em níveis equiparados aos das décadas de 1960 e 70. 

Se não investirmos e não nos tornarmos mais produtivos e competitivos, não teremos alternativa à realização de escolhas que serão críticas. Como refere Mario Draghi, não seremos capazes de nos tornar, em simultâneo, líderes na área das novas tecnologias, um exemplo no contexto global de responsabilidade climática e um interveniente independente nos palcos mundiais. Não seremos, também, capazes de financiar o nosso modelo social e seremos, obviamente, obrigados a reduzir ou a abandonar muitas das nossas ambições.

Este é, como inequivocamente o designa o ex-primeiro-ministro italiano, um desafio existencial. Um desafio que permita à Europa manter (e reforçar) os valores fundamentais de prosperidade, equidade, liberdade, paz e democracia num ambiente sustentável, que permita a sustentação do projecto europeu, garantindo que os nossos concidadãos possam beneficiar - sempre - destes valores fundamentais. 

Se a Europa já não os puder garantir aos seus cidadãos – ou se tiver de escolher e negociar a defesa de uns em detrimento de outros – terá perdido a razão de ser. Por isso, a única forma de enfrentar este desafio é crescer e tornar-se mais produtiva, preservando os valores de equidade e inclusão social. E a única forma de se tornar mais produtiva é mudar radicalmente o seu paradigma económico e de competitividade.

Desta forma, o relatório aponta três áreas de acção essenciais para redinamizar o crescimento económico sustentável da União Europeia, lembrando que em nenhum desses dossiers se está a começar do zero e que há forças transversais – educação, sistemas de saúde fortes, bem-estar social robusto – sobre as quais é possível construir, com celeridade e potencial de sucesso, mas que é preciso inflectir, de forma urgente, a perda de competitividade em sectores produtivos essenciais no panorama global.

O documento aponta a necessidade de um plano conjunto para a descarbonização e competitividade, onde os resultados apenas poderão ser alcançados através de uma coordenação de políticas e de um inequívoco esforço para que a descarbonização não corra em sentido contrário ao da competitividade e do crescimento.

Por exemplo, mesmo com a desaceleração de preços do último ano, as empresas da UE ainda enfrentam preços de electricidade que são 2 a 3 vezes superiores as dos EUA. Os preços do gás natural são 4 a 5 vezes superiores. Se a escassez de recursos naturais na UE justifica uma parte deste diferencial, o formato de organização dos nossos mercados energéticos justifica uma fatia ainda maior, com as regras actuais, os elevados impostos e as rendas excessivas a impedirem que indústrias e famílias captem o essencial dos benefícios de energia limpa nas suas contas. Sem um plano para transferir os benefícios da descarbonização para os utilizadores finais, os preços da energia continuarão a pesar significativamente no crescimento económico. 

O impulso de descarbonização global é também uma oportunidade de crescimento para a indústria da UE, mas não  existe uma garantia de que a Europa consiga aproveitar esta oportunidade. A descarbonização deve ser um benefício claro para o planeta, mas não podemos deixar de insistir para que ela se torne, igualmente, torne uma fonte de crescimento para a economia europeia.

O relatório aponta ainda a imperiosa necessidade de aumentar a segurança e reduzir as dependências da economia europeia. A segurança é, sem dúvida, uma pré-condição para o crescimento sustentável e o aumento dos riscos geopolíticos tende a incrementar a incerteza e as necessidades de investimento para amortecer disrupções súbitas a nível de aprovisionamento, logística e pressões especulativas no mercado.

A este nível, a Europa está particularmente exposta, face à elevadíssima dependência de um pequeno conjunto de fornecedores para matérias-primas críticas, em especial da China, mais ainda quando a procura global destes materiais está a ter um crescimento geométrico alimentado pela transição para as energias limpas. Essa dependência é, igualmente, muitíssimo elevada a nível de tecnologia digital, em que a produção de chips é apenas um dos exemplos mais conhecidos. 

Estas dependências são, em diversos casos,  de duplo sentido – é necessário mercados, nomeadamente o europeu, para absorver a capacidade industrial superavitária da China e de outras economias emergentes asiáticas – mas outros blocos económicos importantes, como os EUA, estão a tentar, de forma muito activa, libertar-se dessas dependências, correndo a UE, por inacção, o risco de se tornar ainda mais vulnerável à coação.

Neste contexto, a UE necessita de coordenar acordos comerciais preferenciais e de investimento directo com nações ricas em recursos, de construir stocks em áreas críticas selecionadas, de desenvolver parcerias industriais para garantir a cadeia de abastecimento de tecnologias essenciais e, em conjunto, de alavancar o mercado.

Se a paz é e deve sempre ser o primeiro e principal objetivo da Europa, a UE não pode deixar de preparar-se para enfrentar as ameaças de segurança física e económica e isso deve reflectir-se também no reforço da capacidade industrial europeia na área da defesa, hoje ainda demasiado fragmentada, com falta de escala, de padronização e de interoperabilidade de equipamentos, enfraquecendo a capacidade europeia de actuar como um bloco e um poder coeso. 

Mas a primeira prioridade que Mário Draghi elenca no seu relatório refere-se à profunda reorientação da estratégia da UE para recuperação do diferencial de inovação face aos EUA e à China, especialmente em tecnologias críticas.

O responsável pela elaboração do relatório considera a Europa presa a uma estrutura industrial demasiado estática, com poucas novas empresas a desafiar as indústrias e os sectores existentes ou a desenvolver novos fontes de crescimento. O ranking das maiores empresas europeias é integralmente dominado por companhias constituídas há mais de cinquenta anos e quase totalmente centradas em tecnologias maduras, onde o potencial de inovação é mais limitado e o investimento em I+D é mais curto. 

O problema europeu não estará ao nível da criatividade ou ambição, mas, muito especialmente, na incapacidade de converter inovação em comercialização e na dificuldade de escalar as suas operações na Europa, muitas vezes penalizadas por regulamentações inconsistentes, excessivas e restritivas.

Isto leva à busca de fontes de financiamento noutras geografias e ao desvio de investimentos para outros mercados, nomeadamente o norte-americano. Entre 2008 e 2021, perto de 30% dos “unicórnios” fundados na Europa transferiram as suas sedes para o exterior, com a grande maioria a mudar-se para os EUA. 

É, pois, preciso desbloquear e libertar o nosso potencial inovador. Isto será fundamental não só para liderar novas tecnologias, mas também para integrar a IA nas indústrias existentes, para que possam permanecer na liderança dos seus sectores.

Para Mário Draghi, a Europa necessita de um crescimento mais rápido da produtividade para manter taxas de crescimento sustentáveis que permitam fazer face a uma demografia particularmente adversa. A principal aposta deverá incidir nas tecnologias digitais e mesmo nos sectores que correm sérios riscos de descompetitividade, não devem ser desaproveitadas as oportunidades de capitalizar futuras ondas de inovação digital. Integrar o verticalmente a IA  na indústria europeia será um factor crítico para desbloquear uma maior produtividade, o que implica também um forte investimento na aquisição de novas competências individuais e colectivas.

E lembra que isso apenas será possível se forem removidas as principais barreiras à inovação na União Europeia, desde logo uma estrutura industrial demasiado estática que tende a gerar um círculo vicioso de baixo investimento e de reduzida inovação. Remover os obstáculos gerados no próprio  “ciclo de vida de inovação” que limita a explosão de novos players, novos sectores e novos adversários. Ampliar o leque de instituições académicas necessárias à obtenção de níveis de excelência e à construção de um pipeline que reforce a conversão de inovação em comercialização.

Ultrapassar os problemas gerados pela escassa escala e alguma desfocagem dos investimentos públicos em I+D na Europa e remover também muitas das barreiras regulatórias ao escalar de operações, barreiras particularmente onerosas no sector tecnológico e muito em especial para as empresas mais jovens, que enfrentam a não existência de um verdadeiro Mercado Único, com dificuldades introduzidas seja escassez de concorrência, seja pela falta de investimento ao nível da conectividade, o que se poderá traduzir, em breve, na multiplicação de estrangulamentos digitais.

Por tudo isto, Mário Draghi defende o desenvolvimento de um programa para resolver este défice de inovação, um programa através do qual a Europa melhore as condições de inovação, ultrapassando as debilidades e a escassa coordenação dos seus programas comuns para a I+D, dando um impulso às instituições académicas europeias que as permita colocar na vanguarda da investigação global. Um programa que permita ajudar a converter ‘inventores’ em empreendedores e em investidores, apostando na capacidade de fazer escalar as suas inovações, gerando um ambiente mais favorável ao financiamento à inovação disruptiva.

Por outro lado, e levando em linha de conta o domínio dos fornecedores dos EUA, a UE deve procurar um equilíbrio e um ponto intermédio entre a promoção das suas indústrias digitais.  domésticas e a garantia de acesso às tecnologias de que necessita.

A Europa está a enfrentar uma escassez de competências em toda a economia, reforçada por uma força de trabalho em declínio, o que funciona como uma barreira à inovação e à adoção da tecnologia e pode, em paralelo, dificultar a transição para a descarbonização. Deve, pois, ser revista a abordagem europeia ao nível de competências, tornando-a mais estratégica, mais orientada para o futuro e mais focada no combate à escassez de competências emergentes.

Espero que este texto ajude a desafiar os leitores para uma análise mais funda e mais fina do Relatório Draghi, que para além do exercício que realiza e das pistas que propõe, acaba por funcionar como uma ‘pedrada-no-charco’, afirmando sem tibiezas que ‘O Rei Vai Nu’.

Um relatório que desfaz eventuais dúvidas sobre como o défice de competitividade da Europa nos está a colocar cada vez mais longe dos nossos principais competidores (e com crescente dificuldade em recuperar e ultrapassar esse diferencial), que sem investimentos de enorme dimensão esse diferencial não apenas não será colmatado, como nos colocaremos numa posição de crescente fragilidade e vulnerabilidade, que é impossível financiar esses investimentos sem criação acelerada de riqueza e que esses investimentos terão que ser compaginados com muitos outros em matéria de ambiente, transição energética e descarbonização, mas também de suporte ao modelo social europeu.

No fundo, inovar numa aparentemente impossível quadratura do círculo que não podemos deixar de tentar alcançar sob pena da falência acelerada do projecto europeu e da triste necessidade de termos que decidir entre valores básicos e fundamentais, porque o que hoje damos como adquirido converter-se-á, mais à frente, em utópico, acessório ou inalcançável.

Certamente um legado que não queremos deixar aos nossos filhos e às próximas gerações.