Em 2019, foi publicada a Directiva UTP, relativa ao combate contra as práticas comerciais desleais, com o objetivo de corrigir os desequilíbrios do poder de negociação entre fornecedores e compradores de produtos agrícolas e agroalimentares. O seu objetivo primeiro passa por proteger a produção primária e a transformação na venda dos seus produtos aos ascalões a jusante da cadeia de abastecimento.
Essa Directiva foi transposta para o direito português em 2021, sendo ‘acomodada’ em dois diplomas – o das chamadas PIRC (as práticas individuais restritivas do comércio) e o dos prazos de pagamento no sector agroalimentar – aprofundando regimes legais em vigor há vários anos e, ambos, anteriores à discussão e aprovação daquela Directiva.
Entretanto, da experiência adquirida com o progressivo enforcement da Diretiva, resultou a necessidade de abordar a dimensão transfronteiriça dessas mesmas práticas comerciais desleais, considerando que, em média, cerca de 20 % dos produtos agrícolas e agroalimentares consumidos num Estado-Membro da UE provêm de outro Estado-Membro.
Assim, a Comissão Europeia publicou a sua proposta em dezembro de 2024, no âmbito dos esforços da UE para melhorar a posição da produção primária ao longo da cadeia de abastecimento e as regras propostas reflectem também recomendações emanadas do diálogo estratégico sobre o futuro da agricultura da UE e, na opinião de Bruxelas, dão resposta a alguns dos desafios mais prementes que o sector agrícola enfrenta.
Há poucos dias, os representantes dos Estados-Membros no Comité Especial da Agricultura (CEA) aprovaram o mandato de negociação do Conselho em relação àquela proposta, sendo que o Ministro da Agricultura e do Desenvolvimento Rural da Polónia, país que detém actualmente a Presidência do Conselho, referiu que "os agricultores europeus merecem que o seu trabalho lhes proporcione um nível de vida adequado. Com estas regras, protegê-los-emos melhor contra práticas comerciais desleais além-fronteiras e reforçaremos a sua posição na cadeia de abastecimento alimentar."
A proposta da Comissão visa estabelecer um conjunto abrangente de regras para a cooperação transfronteiriça contra práticas comerciais desleais nas relações entre empresas na cadeia de abastecimento agrícola e alimentar, e melhorar a cooperação transnacional nos casos em que os fornecedores e os compradores se encontram em Estados-Membros diferentes, introduzindo um mecanismo de assistência mútua, que permitirá às autoridades competentes nacionais solicitar e trocar informações e solicitar a outra autoridade competente que tome medidas em seu nome.
Introduz igualmente um mecanismo de ação coordenada em casos de práticas comerciais desleais transfronteiriças em grande escala que abranja, pelo menos, três países da EU, sendo que nesses casos, será designado um coordenador para facilitar a actuação das entidades envolvidas.
Por seu lado, o Conselho apoia os principais elementos da proposta da Comissão, mas sugere uma série de melhorias no seu mandato de negociação e, em especial, pretende que o diploma contenha também regras para a cooperação entre os Estados-Membros em caso de práticas comerciais desleais por parte de compradores de fora da UE, a fim de proteger melhor a cadeia de abastecimento na Europa.
O mandato do Conselho introduz ainda regras relativas à cobertura dos custos incorridos em casos de assistência mútua, sendo que as coimas cobradas podem ser utilizadas para cobrir esses custos, clarifica as regras ao abrigo das quais os Estados-Membros podem recusar dar seguimento a um pedido de informações da autoridade nacional de outro Estado-Membro ou recusar participar em medidas de aplicação e clarifica igualmente as regras em matéria de proteção de dados e confidencialidade.
A Centromarca e a nossa congénere europeia, a AIM, apoiam amplamente o texto proposto pela Comissão Europeia para reforçar a aplicação transfronteiriça de práticas comerciais desleais, dando resposta aos desafios de enforcement que surgem quando compradores e fornecedores estão localizados em diferentes Estados-Membros, muito em especial nos casos que envolvem as ERAs, as European Retail Alliances. E não existindo dúvidas em relação ao impacto positivo resultante da implementação da Directiva UTP, a fragmentação das implementações nacionais ainda deixa espaço vazios em relação à sua aplicação efectiva,
Por isso, é crucial a existência de um mecanismo de assistência mútua que implique as autoridades nacionais numa colaboração mais integrada para lá das suas fronteiras. Ao padronizar os procedimentos e a troca de informações, confere-se uma garantia de que regras mais rigorosas numa jurisdição possam ser aplicadas de forma eficaz quando o comprador se encontra noutra.
Vale a pena recordar que aquelas ERAs operam geralmente em diversas jurisdições, o que as torna difíceis de investigar ao abrigo das leis UTP nacionais (no caso português, o diploma das PIRC), sendo indiscutivelmente necessária uma supervisão transfronteiriça mais eficaz para evitar práticas que prejudiquem uma concorrência leal e adequada e a escolha de produtos por parte dos consumidores.
A Centromarca e a AIM, apoiando esta proposta de diploma, consideram que a mesma não deve colocar de lado a necessidade de uma uma revisão mais ampla da Diretiva UTP na qual se adicione uma base jurídica associada ao mercado interno para complementar as competências existentes focadas exclusivamente na agricultura, que permita alargar as protecções UTP a todos os fornecedores, independentemente da sua dimensão, que esclareça, de forma clara, a aplicação extraterritorial das leis nacionais de UTP e que, a exemplo das regras recentemente aprovadas no quadro da Lei dos Mercados Digitais (Digital Markets Act) para as “prateleiras” online, proibir também a autopreferência nas prateleiras físicas.
Um ambiente de execução mais harmonizado e robusto ajudará, sem dúvida, a nivelar as condições de concorrência, promoverá a inovação e fomentará uma escolha mais ampla e mais informada por parte do consumidor, sendo que através de uma aplicação mais consistente das regras UTP em todo o mercado interno, os fabricantes e as suas marcas — desde as PME às grandes multinacionais — podem concentrar-se em fornecer qualidade, valor e sustentabilidade aos consumidores europeus.
Em conclusão, este diploma, agora na sua fase final de tramitação, constitui um passo oportuno e necessário para uma cooperação transfronteiriça mais aprofundada, mas também mais equitativa e justa e juntamente com as propostas para uma revisão mais alargada da Diretiva UTP, tenderão a tornar a cadeia de abastecimento na Europa mais resiliente, a reforçar a competitividade da UE e a garantir que os consumidores europeus continuem a beneficiar de um mercado diversificado e inovador, com qualidade e sustentabilidade reforçadas.