A discussão em torno das cadeias de abastecimento ganhou uma centralidade inédita nos últimos anos. O setor do grande consumo, pela sua natureza intensiva, diversificada e altamente exposta a oscilações globais, tornou-se um dos principais pontos de observação para compreender as fragilidades e, simultaneamente, as forças do comércio internacional.
O que começou como uma perceção de iminente colapso logístico, alimentada por choques sucessivos — pandemia, inflação, crises energéticas e tensões geopolíticas — evoluiu hoje para um quadro mais complexo, mas também não tão negativo como se antevia. A resiliência demonstrada pelas cadeias de abastecimento, em particular no grande consumo, merece ser analisada como sinal de transformação estrutural e como oportunidade de reforço competitivo.
Não é possível compreender as dificuldades atuais sem compreender o peso do contexto político. A rivalidade estratégica entre os Estados Unidos e a China, agora também alargada à União Europeia, continua a ser o principal eixo de tensão, manifestando-se através de tarifas, controlos tecnológicos, incentivos ao reshoring e uma crescente política de alianças comerciais selectivas. Estes movimentos criam incerteza sobre a previsibilidade das regras de comércio global e exigem às empresas europeias uma capacidade de adaptação permanente.
Paralelamente, a guerra na Ucrânia prolonga-se, continuando a afectar cadeias energéticas, rotas de transporte e mercados agrícolas essenciais para a Europa. Acresce a instabilidade atávica no Médio Oriente, com impacto direto no custo dos fretes marítimos e na segurança de corredores estratégicos como o Mar Vermelho. Para um sector que depende de fluxos constantes e eficientes, estes factores funcionam como variáveis de risco permanentes.
Contudo, apesar da narrativa dominante de fragmentação, há sinais de que a interdependência entre blocos económicos continua a impor limites a medidas mais radicais. As grandes potências não podem prescindir totalmente umas das outras, e essa realidade cria um equilíbrio instável, mas. apesar de tudo, funcional, que permite que o comércio continue a fluir, mesmo que de forma reconfigurada.
No plano microeconómico, o que observamos é uma aceleração de processos de transformação que já estavam em marcha, mas que ganharam urgência. Muitas empresas que dependiam de fornecedores únicos em geografias de risco iniciaram uma estratégia de diversificação de origens e de construção de redundâncias a nível de supply chain. O nearshoring e o friendshoring deixaram de ser conceitos académicos para se tornarem decisões concretas de investimento, com impactos visíveis em sectores como o agroalimentar e o retalho.
A digitalização desempenha aqui um papel decisivo. Sistemas de previsão de procura baseados em inteligência artificial, monitorização em tempo real de inventários e soluções avançadas de gestão de risco estão a permitir ganhos de eficiência e maior capacidade de antecipação. O modelo linear e rígido das cadeias globais dá lugar a um ecossistema mais flexível, em rede, preparado para absorver choques e responder a variáveis externas de forma mais ágil.
No sector do grande consumo, as marcas e os retalhistas desempenham uma função central não apenas como intermediários comerciais, mas como garantias de confiança para o consumidor. A crise recente mostrou que a fidelidade do consumidor não se assegura apenas pelo preço ou pela disponibilidade imediata, mas também pela capacidade de manter padrões de qualidade, transparência e sustentabilidade em contextos adversos.
Este reposicionamento teve dois efeitos relevantes: por um lado, reforçou a importância de fornecedores locais e regionais, capazes de assegurar cadeias mais curtas e previsíveis; por outro, valorizou parcerias de longo prazo entre produtores, distribuidores e retalhistas, reduzindo a dependência de relações transaccionais excessivamente voláteis. O capital reputacional das marcas passou a estar também e cada vez mais, ligado à forma como estas gerem as suas cadeias de abastecimento, tornando a resiliência logística um activo competitivo.
O sector do grande consumo é igualmente e por definição, um reflexo da vitalidade económica e social. A manutenção do abastecimento das prateleiras, mesmo em fases críticas, foi um sinal inequívoco de que o sistema global, embora sujeito a tensões, continua a funcionar. Essa constatação abre espaço para uma leitura menos catastrofista: as cadeias de abastecimento não colapsaram; estão a adaptar-se e, nesse processo, a criar novas oportunidades.
Para a Europa, esta é uma oportunidade estratégica. O reposicionamento das cadeias globais favorece regiões que combinem estabilidade política, infraestruturas de qualidade e proximidade a grandes mercados consumidores. Portugal e a Península Ibérica, pela sua localização, capacidade logística portuária e ligação a mercados africanos e latino-americanos, podem beneficiar desta tendência, se conseguirem alinhar políticas públicas e incentivos ao investimento.
Não se devem ignorar os riscos. A volatilidade dos preços energéticos, a escassez de matérias-primas críticas e a imprevisibilidade de decisões políticas internacionais continuam a ser ameaças que exigem planeamento e prudência. Mas a principal lição dos últimos meses é clara: a supply chain aprendeu, de alguma forma, a viver com a incerteza e a incorporá-la como variável estrutural.
Essa aprendizagem traduz-se em novas práticas de gestão, numa aposta reforçada na inovação e numa mentalidade mais orientada para a resiliência. O sector do grande consumo, pela sua exposição directa ao quotidiano dos cidadãos, é talvez o melhor exemplo de como é possível transformar crise em oportunidade e turbulência em adaptação.
Desta forma, a narrativa dominante de fragilidade e vulnerabilidade das cadeias globais precisa ser revista. O que se verifica é uma transformação acelerada, com elementos de risco, sim, mas também com sinais claros de robustez e inovação. A supply chain deixou de ser um tema técnico restrito a gestores de logística para se tornar uma variável central de competitividade económica, de política pública e de confiança do consumidor.
Num momento em que o pessimismo parecia inevitável, emerge um otimismo cauteloso: as cadeias de abastecimento do grande consumo, longe de colapsarem, estão a reinventar-se. Essa reinvenção é, em si mesma, uma oportunidade de futuro.