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Opinião
A INCERTEZA JÁ NÃO É CRISE, É MÉTODO
o sector do grande consumo se converteu no mais vasto laboratório de adaptação da economia portuguesa. Atravessou uma pandemia, uma crise logística global, uma inflação que não víamos há três décadas, tensões geopolíticas, pressões inéditas
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Num tempo em que a volatilidade deixou de ser um episódio e passou a ser rotina, torna-se evidente que o sector do grande consumo se converteu no mais vasto laboratório de adaptação da economia portuguesa. Atravessou uma pandemia, uma crise logística global, uma inflação que não víamos há três décadas, tensões geopolíticas, pressões inéditas sobre custos e margens, e uma transformação profunda no comportamento do consumidor.

E, apesar de tudo isto, não apenas resistiu: evoluiu. Portugal é hoje um dos mercados mais dinâmicos da Europa Ocidental em valor e volume. Não porque tenha escapado às dificuldades, mas porque soube fazer o que a maioria não conseguiu: transformar a incerteza em disciplina, a pressão em reinvenção e a crise em método de trabalho.

A verdade é que, nos últimos anos, o grande consumo foi submetido a um teste de stress colectivo. O sector enfrentou uma sucessão de choques que, em condições normais, se distribuiriam por uma geração inteira. As cadeias de abastecimento foram interrompidas, matérias-primas tornaram-se escassas, a energia atingiu preços históricos, e o consumidor viu o seu poder de compra encolher ao mesmo tempo que exigia mais transparência, mais qualidade e mais coerência. E, mesmo assim, o sector não ruiu.

A reacção foi rápida, inventiva e, por vezes, heroica. A resiliência deixou de ser excepção para se tornar cultura. A adaptação deixou de ser reacção para ser prática diária. E a gestão da incerteza deixou de ser uma função periférica para se tornar o sistema operativo de todo o sector.

A relação entre marcas, retalhistas e consumidores acompanha esta transformação. Durante décadas, este triângulo funcionou de forma linear: o fabricante produzia, o retalhista colocava, o consumidor escolhia. Hoje, esse modelo está obsoleto. A dinâmica actual é circular, interactiva e profundamente interdependente.

As marcas vivem sob um escrutínio como nunca antes: têm de provar valor diariamente, justificar a diferença cêntimo a cêntimo, demonstrar propósito, explicar origem, assegurar sustentabilidade e inovar sem perder a coerência. Num contexto de compras mais ponderadas, menos impulsivas e mais selectivas, não há promoção que salve uma marca incoerente. O consumidor observa, compara, valida e decide com uma racionalidade que convive com factores emocionais igualmente cruciais: a confiança e a empatia.

Os retalhistas, por seu lado, tornaram-se prescritores e arquitectos de experiência. A loja física – e em especial a de proximidade - renasceu como espaço de vida quotidiana, como hub logístico, como interface digital e como ponto de contacto emocional. A marca própria já não é apenas alternativa. E o retalho passou a estar no centro de uma equação complexa que junta logística, dados, tecnologia, sustentabilidade, conveniência e relação humana. O retalhista moderno é simultaneamente plataforma, mediador, árbitro de sortido e guardião de confiança.

E há ainda um protagonista maior: o ‘novo’ consumidor. Portugal tem hoje mais de 1,2 milhões de residentes estrangeiros, uma das populações mais envelhecidas da Europa e um número crescente de lares individuais ou de escassa dimensão. A diversidade aumentou, a estrutura etária mudou e os padrões de consumo transformaram-se de forma profunda.

O consumidor, hoje, compra menos por impulso e mais por convicção. Pondera mais e exige mais. Tolera menos incoerência e procura marcas e retalhistas que lhe transmitam clareza num mundo de incerteza. Quer conveniência, mas recusa perder qualidade. Procura preço, mas não abdica de sentido. Valoriza rapidez, mas exige respeito. E, perante a pressão inflacionista, tornou-se um decisor proficiente, atento às contas, mas também à autenticidade.

Perante este novo ecossistema, o sector está a abandonar a lógica da competição isolada. A complexidade tornou-se demasiado grande para que alguém actue sozinho. Hoje, colabora quem quer sobreviver e coopera quem quer liderar.

As cadeias de abastecimento estão a ser redesenhadas com proximidade, tecnologia e sustentabilidade. A pressão logística e energética obriga a repensar origens, rotas e parcerias. A pegada ambiental deixa de ser capítulo para ser critério. A eficiência não é apenas produtividade: é vantagem competitiva. E a integração tecnológica - da automatização ao uso estratégico de dados e de inteligência artificial - está a acelerar decisões e a tornar visível aquilo que antes era opaco.

Ao mesmo tempo, os formatos de loja estão a mudar rapidamente. As lojas compactas multiplicam-se, a conveniência expande-se, o sortido curto ganha relevância, o omnicanal torna-se regra, e a experiência dentro da loja transforma-se numa extensão natural da experiência digital. O tempo tornou-se um novo preço, e quem poupa tempo ao consumidor conquista-o consistentemente.

Os sinais do que vem aí confirmam esta trajectória. O consumidor será ainda mais informado, mais selectivo e mais exigente. Continuará a comparar tudo, mas a valorizar mais o essencial. A proximidade crescerá. A marca própria consolidará a sua posição. A pressão de margens manter-se-á. A exigência de sustentabilidade deixará de ser opção para ser obrigação. A tecnologia será invisível, mas omnipresente. E o universo do grande consumo exigirá equipas cada vez mais qualificadas, capazes de lidar com complexidade, tecnologia e relação humana em simultâneo.

Neste futuro próximo, a confiança será o activo mais escasso e mais valioso. Sem confiança não há dados partilhados, sem dados não há colaboração, sem colaboração não há eficiência e sem eficiência não há competitividade. A confiança é, hoje, a infraestrutura invisível que sustenta o sector. E será também o critério que distinguirá quem cresce de quem desaparece.

O grande consumo português deu, nos últimos anos, uma prova extraordinária de maturidade económica e social. Cresceu na incerteza, reinventou-se na adversidade e encontrou nos consumidores o seu verdadeiro ponto de orientação. A incerteza já não é uma crise: é uma bússola. Quando compreendida, obriga a decidir melhor, a inovar com mais sentido e a agir com mais verdade.

Num mundo de ruído, aquilo que permanece é simples: marcas com propósito e retalhistas com coerência. Tudo o resto é transitório. E talvez por isso seja tão acertado afirmar que, no fim, aquilo que não tem marca não deixa marca e aquilo que não tem propósito não perdura.