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Opinião
A BOLA É MINHA… OU JOGO EU OU NÃO JOGA NINGUÉM
No futuro, o “dia da libertação” ser recordado como o dia em que Donald Trump começou a minar a economia dos EUA e a segurança económica dos americanos nas próximas décadas. Mas também a dinamitar a economia e a segurança económica de países
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O texto que vos trago hoje foca-se não, como é habitual, nas questões das marcas, do (nosso) mercado, do consumo e do consumidor, mas mais nas áreas da política comercial internacional e da geoestratégia, das quais sendo um observador atento, estou longe de ser um especialista. E faço-o com a convicção de que o que está a acontecer nessas áreas terá, muito rapidamente, forte impacto no mundo do grande consumo em que nos movemos.

Assim é fácil observar que nos últimos dias o mundo foi assolado por uma verdadeira tempestade política, social e económica. As sucessivas decisões da Administração Trump têm criado incredulidade, desconfiança, estupefacção e um brutal impacto nas economias a nível global, nos níveis de confiança de cidadãos e empresários e, em resultado disso, nos mais diversos mercados financeiros, presentes e futuros, um dos principais barómetros da ‘saúde’ económica do planeta.

Vale a pena recordar que esta é já a segunda presidência de Donald  Trump e que a sua primeira Administração, embora de forma bem mais tímida e, acima de tudo, menos abrupta, havia já tentado jogar a cartada do protecionismo, apoiada numa estratégia de agravamento das tarifas alfandegárias em relação a alguns dos seus principais parceiros económicos.

Essas medidas, accionadas entre 2017 e 2020, tiveram – já nessa altura - impactos significativos na economia global, entre os quais uma redução sensível do comércio internacional, em especial nas trocas com a China e com a própria União Europeia, com o aumento dos custos de importação e quebras no volume de comércio entre EUA e os países afectados e transferências geográficas, com muitas empresas a procurarem alternativas aos EUA ou à China enquanto mercados de origem, mas também como mercados de destino.

Foram geradas tensões nas cadeias de aprovisionamento globais, com impactos especialmente visíveis na pandemia e no pós-pandemia, aumentando, por exemplo, os custos de produção para empresas que dependem mais fortemente de componentes importados e estimulando a relocalização das produções, gerando incerteza e sobrecustos e provocando aumentos dos preços ao consumidor, alimentando a inflação e motivando retaliações comerciais, com os países prejudicados a responderem com ‘tarifas de retaliação’ sobre produtos americanos, penalizando sectores agrícolas e industriais no interior dos Estados Unidos e pressionando as empresas exportadoras.

Já na primeira Administração Trump as guerras comerciais criaram um clima de incerteza para os investimentos, levando muitas empresas a postecipá-los e com os mercados financeiros a sofrerem fortes abanões, à velocidade das notícias sobre tarifas, ameaças e negociações. E a gerarem um impacto muito negativo sobre as economias nos países emergentes, em especial nos países exportadores de matérias-primas e componentes e nos países comercialmente mais dependentes da China ou dos EUA.

Ou seja, as tarifas impostas por Trump no seu primeiro mandato já haviam contribuído para uma redução do comércio à escala global, provocando o aumento de tensões geopolíticas e distorções sérias nas cadeias de produção, com efeitos colaterais sobre preços, investimentos e sobre o crescimento económico global, estimulando uma tendência de desglobalização parcial ou realinhamento comercial, que se prolongaria e aceleraria até nos anos seguintes.

Estranhamente (ou talvez não), apesar do agressivo discurso de Donald Trump, durante toda a campanha eleitoral, de todo o populismo colocado em cima do slogan ‘Make America Great Again’ e de todos os sinais que provinham do seu primeiro mandato, alguns analistas e comentadores pareciam esperar do novo Presidente americano uma atitude menos contundente.

Porque esses sinais eram meros tiques eleitoralistas, para consumo interno, porque estava rodeado de alguns dos mais renomados empresários do país, porque o legado que quereria deixar era o de um forte crescimento económico, ainda que com um certo ‘preço’.

Hoje, parece até difícil absorver que Donald Trump está em funções há apenas dois meses e meio, quando observamos toda esta turbulência e a sucessão infindável de ‘episódios’ que, todos os dias, nos vai massacrando.

Mas, no meio de tudo isto, as perguntas que, julgo, muitos se colocarão nesta altura, passam por perceber se é possível, ainda que a médio/longo prazo, construir um crescimento económico saudável em cima de políticas tão marcadamente protecionistas e, se na verdade, somos nós que não estamos a ver, mas a guerra comercial de Trump pode, ainda assim, conduzir a uma vitória estratégica e económica para os Estados Unidos.  

Em tese, alguns economistas referem que o protecionismo pode, pelo menos no curto prazo, induzir algum crescimento económico e dão como exemplo, a criação de um ‘escudo’ que permita o desenvolvimento de sectores industriais ainda frágeis – o que parece pouco crível no contexto norte-americano -, protegendo-os da concorrência externa, permitindo-lhes ter tempo para crescerem e se tornarem competitivos, para criar empregos locais e incentivar a inovação.

Outro exemplo, também francamente desfasado da realidade dos EUA, será o de países muito dependentes de um pequeno leque de produtos (como os combustíveis fósseis ou a  agricultura) poderem usar tarifas aduaneiras  para estimular a diversificação industrial. Outros dois exemplos, muito queridos pela Administração Trump, serão os da utilização de medidas protecionistas para manter certos sectores estratégicos (como a defesa, as comunicações, a tecnologia ou a alimentação) sob controle interno ou quando as mesmas são accionadas em resposta a supostas práticas desleais de competidores estrangeiros, sendo que as tarifas visarão restaurar uma concorrência alegadamente mais justa.

Mais comum é o reconhecimento de que o protecionismo, especialmente a longo prazo, tende a prejudicar o crescimento económico, porque conduz a ineficiência e falta de inovação, com as empresas dos sectores protegidos a acomodarem-se, a verem a sua produtividade estagnar e a não diversificarem a sua participação no mercado. Porque conduz a um custo mais alto para consumidores e empresas, com os produtos, as matérias-primas e os factores de produção provenientes do exterior a ficarem mais caros, induzindo inflação e redução do poder de compra. Porque tende a motivar a retaliação internacional, com outros países a imporem também tarifas aduaneiras, prejudicando exportações e conduzindo a guerras comerciais intermitentes e porque tende a motivar o isolamento económico, com barreiras comerciais a dificultarem o acesso a tecnologias, capitais e parcerias globais.

Numa economia próxima do pleno emprego, com custos de produção mais exigentes e mais elevados dos que em muitos dos países de origem das correspondentes importações, com a incapacidade de prover parcial ou totalmente o abastecimento do mercado americano em produtos procurados pelos consumidores dos Estados Unidos, parece difícil perceber o sucesso esperado de políticas de ‘renacionalização’ industrial. E mais difícil é perceber a obsessão com o déficit da balança de transacções de bens de consumo, quando, pelo contrário, beneficiam de um amplo superavit quando se fala da área de serviços, de muito mais visível valor acrescentado e que, em boa verdade, permite criar uma elevadíssima dependência de um largo leque de países face aos EUA, em áreas tão básicas como o software, as telecomunicações ou os meios de pagamento.

Na realidade se o mercado americano é o maior do mundo, é também verdade que esse mercado está longe de ser suficiente para dar espaço de crescimento à economia e às empresas americanas, que precisam – como do pão para a boca – de outros mercados, em todo o planeta, para colocar os seus produtos e os seus serviços e utilizar adequadamente a sua capacidade de influência.

Os Estados Unidos, isoladamente, são, pois, excessivamente curtos para a economia americana.

Por isso, como refere Ryan Mulholland num recente artigo que escreveu para o Center for American Progress,  a guerra comercial de Trump parece ser um grande erro económico e estratégico.

Ryan Mulholland, ao contrário de muitos dos que influenciam hoje as políticas comerciais do Presidente Trump, não é propriamente um anónimo ou alguém escolhido por possuir um perfil de total lealdade ao ocupante da Casa Branca. Ryan Mulholland desempenhou até há pouco tempo funções como diretor de comércio e competitividade no Conselho de Segurança Nacional e liderou as negociações do governo dos EUA sobre o Quadro Económico Indo-Pacífico.

Assim, refere Mulholland, a decisão do Presidente Donald Trump de lançar unilateralmente uma guerra comercial global poderá vir a ser um dos piores erros de política económica da história americana, com a Administração dos EUA a impor tarifas numa extensão que seria inimaginável há pouco tempo. Uma linha de actuação que não levou em linha de conta se os países penalizados são ou não aliados políticos e económicos ou se as respectivas  exportações são ou não fundamentais para apoiar a economia dos EUA.

Por isso, a guerra comercial de Trump, que ocorreu sem a aprovação do Congresso e através de uma declaração de uma emergência nacional duvidosa, vai, desde logo, custar caro às famílias americanas ao aumentar os preços ao consumidor, sendo que, em simultâneo, reduziu fortemente as suas poupanças no mercado de acções. E, na opinião de Mulholland, está condenada ao fracasso numa coisa que Trump prometeu fazer: trazer de volta os empregos aos Estados Unidos.

As novas tarifas de Trump correspondem ao maior aumento de impostos naquele país em quase 60 anos, com um impacto fiscal altamente regressivo. De acordo com uma estimativa da Universidade de Yale, das tarifas de Trump resultará directamente um aumento de preços a curto prazo nos EUA de 2,3% e uma perda média de poder de compra de 3.800 dólares por agregado familiar, com a agravante de a diminuição do rendimento disponível ser 2,5 vezes superior nas classes de menores rendimentos, face aos dez por cento da população com rendimentos mais elevados. Mas há previsões que apontam inflações ainda mais fortes, crescimentos económicos mais baixos e uma ainda maior probabilidade de recessão já em 2025.

A decisão da administração Trump de aumentar a tarifa média para 22% é, no mínimo,  surpreendente, sendo um nível que não se observa desde o final da primeira década do século XX (!!!), quando as tarifas eram a principal fonte de receitas do governo federal, situação que se alterou ainda antes do início da I Grande Guerra, quando o Congresso promulgou o imposto sobre o rendimento.

A fórmula de cálculo gerou uma quase total incredulidade: a Administração Trump determinou a taxa pautal de cada país dividindo o défice comercial que cada país tinha com os Estados Unidos pelas suas exportações e a fórmula tarifária baseia-se apenas no comércio de bens e não inclui serviços, onde os Estados Unidos usufruem de um significativo excedente comercial. A metodologia da administração Trump também não tem em conta o mais básico dos factos: o do poder de compra dos consumidores dos EUA e dos mercados de origem/destino ser de tal forma desequilibrado, fazendo com que os consumidores americanos possam comprar produtos provenientes do exterior, quando os consumidores desses mercados não têm, em muitos casos, capacidade de comprar produtos made in USA.

Não é claro como as taxas tarifárias da administração Trump irão mudar no futuro, uma vez que tanto o défice comercial como o montante das exportações de um país para os Estados Unidos poderão alterar-se consideravelmente em resposta às acções do presidente americano. A falta de visibilidade a longo prazo, por outro lado, poderá também fazer com que os investidores adiem grandes investimentos até terem uma melhor compreensão da dinâmica do mercado para os próximos anos.

Para além disso, as guerras comerciais de Trump causarão danos duradouros nos parceiros internacionais. Como seria de esperar, as medidas anunciadas estão já a gerar retaliações económicas contra os Estados Unidos, incluindo, obviamente, tarifas sobre as exportações dos EUA. Sendo que esse jogo provocará também uma forte pressão noutros mercados, onde as potências mais fortes lutarão para conquistar o espaço que lhes permita compensar as perdas associadas ao recuo no mercado norte-americano. Vários governos e empresas estrangeiras estão a tentar consciencializar os consumidores dos EUA sobre o impacto negativo que a guerra comercial de Trump está a ter - e irá ter ainda mais - nos seus bolsos.

A administração Trump parece esperar que estas tarifas drásticas incitem os líderes estrangeiros a abordá-la na expectativa de obter concessões. Apesar disso, o incentivo para que os líderes mundiais, na esfera política e empresarial, cedam publicamente à intimidação da administração Trump não é demasiado elevado. A profunda impopularidade do Presidente Trump no estrangeiro proporciona aos líderes mundiais um contraponto politicamente útil e, mesmo a nível de opinião pública, potencialmente ganhador.

Nos mercados de concorrência geoestratégica – particularmente em África, no Sudeste Asiático e na América Latina – o novo regime tarifário da administração Trump está a ser observado em paralelo com a retirada da ajuda americana, minando a influência dos Estados Unidos em benefício de outros blocos económicos e em especial da China, criando incerteza e motivando reorientações que poderão ter repercussões a nível de segurança regional, mas também da segurança global.

Na prática, Trump está a comportar-se como o fortalhaço no recreio da escola, que pega na bola e diz que ou joga ele ou não joga ninguém, mas corre o risco de ficar a jogar sozinho, mais fraco e mais isolado…

Os Estados Unidos parecem esquecer-se que enfrentam desafios complexos – alterações climáticas, ameaças terroristas, pandemias, concorrência de economias não mercantis como a China, migração irregular – que exigem uma colaboração contínua com governos estrangeiros. Infelizmente, as ações de Trump estão a arruinar estas relações e poderão levar gerações a repará-las. Os até aqui parceiros mais próximos estão a ver, cada vez mais, os Estados Unidos como pouco fiáveis, na melhor das hipóteses, e, na pior, como um adversário declarado.

As tarifas poderiam, em tese, ser úteis como componente de um plano mais vasto para recuperar a produção americana e promover a competitividade dos EUA, mas elas são essencialmente uma arma de arremesso e não tanto uma parte relevante de uma estratégia abrangente. A manter-se esta saga, algumas empresas globais podem, na verdade, determinar que é simplesmente mais fácil excluir completamente os Estados Unidos das suas cadeias de abastecimento. Os fabricantes norte-americanos podem ver-se incapazes de obter factores de produção a preços competitivos e descobrir que a procura no estrangeiro pelos seus produtos é limitada devido aos custos operacionais mais elevados e à sua associação com os Estados Unidos. Nalguns casos, a eventual relocalização industrial para fornecer o mercado americano motivará a escolha de países onde as tarifas sejam mais baixas e não tanto os que sejam mais eficientes, mais sustentáveis ou que defendam melhor os direitos dos seus trabalhadores.

Em conclusão, refere Mulholland, a guerra comercial da administração Trump está a atingir a economia dos EUA com uma marreta, com danos colaterais que afectarão todas as famílias americanas, que verão os preços mais elevados e as cadeias de abastecimento perturbadas, correndo-se o risco de, no futuro, o “dia da libertação” ser recordado como o dia em que Donald Trump começou a minar a economia dos EUA e a segurança económica dos americanos nas próximas décadas.  Mas também a dinamitar a economia e a segurança económica de países e populações em todo o planeta.