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TODAS AS MARCAS TÊM OS MESMOS DIREITOS… E AS MESMAS OBRIGAÇÕES
A crise económica que atravessamos e a pressão inflacionista que estamos a viver estão a atacar a carteira das famílias portuguesas ...
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A crise económica que atravessamos e a pressão inflacionista que estamos a viver estão a atacar a carteira das famílias portuguesas e é normal que todos - e ainda mais especialmente os que têm rendimentos disponíveis mais reduzidos – sintam o imperativo de redução do seu nível de despesa e o apelo para a compra dos produtos de menor preço.

Na grande maioria das situações, os preços mais baixos que podem ser encontrados nas prateleiras correspondem aos produtos das marcas próprias dos retalhistas.

O crescimento da respectiva quota de mercado tem sido galopante e apenas em cinco meses (os últimos dados disponíveis referem-se ao final de maio) já teve um incremento de 2,5 pontos percentuais, estando nesta altura a roçar uma quota de 40%, em valor. Se a mesma parcela do mercado fosse avaliada em volume, o volume subiria amplamente e, pelos meus cálculos, estaria em cima da fasquia dos 55%.

E se, claro, as dificuldades económicas e o apelo dos preços mais baixos tendem a fazer crescer aquela quota de mercada, não são, longe disso, os únicos alimentadores desta subida fulminante. A atenção, investimento e promoção das marcas próprias, a feroz concorrência entre marcas próprias dos diferentes retalhistas (quem ainda não viu a agressiva campanha televisiva do Intermarché?) e o crescimento da quota das insígnias de retalho curto (onde as vendas de marca própria duplicam as das insígnias ‘convencionais’) são também combustíveis para este motor.

Mas se hoje – e desde há muito tempo – não faz qualquer sentido questionar a existência ou a crescente presença das marcas próprias nos carrinhos de compras dos consumidores e se, sem dúvida, as marcas próprias são marcas na mais ampla acepção, é também verdade que todas as marcas têm que beneficiar dos mesmos direitos… e cumprir com as mesmas obrigações.

E é aqui que a porca torce o rabo…

Há poucos dias, o meu amigo Ignacio Larracoechea, o principal responsável da Promarca, a associação espanhola homóloga da Centromarca escrevia um amplo texto de opinião do diário El Confidencial intitulado "El trato discriminatorio a las marcas de fabricante frente a las de distribución".

Um texto objectivo e certeiro – como é timbre do Ignacio – de que, com a devida vénia, vos deixo (numa tradução livre) alguns excertos.

Escreve Ignacio Larracoechea que vem “alertando há muitos anos sobre as consequências negativas do tratamento discriminatório que algumas empresas de distribuição fazem contra as marcas de fabricantes para favorecer a comercialização de suas marcas próprias, o que tem consequências negativas para a concorrência, a economia e os consumidores”.

E acrescenta: “claro que as marcas próprias merecem ter os mesmos direitos que as marcas de fabricante, mas também as mesmas obrigações, o que não é o caso. As regras do jogo não são as mesmas para ambos. As regras favorecem as marcas de distribuição porque o seu dono, o distribuidor, é o juiz e parte do que o consumidor encontra nas prateleiras e das condições em que as encontra”.

Para o responsável da Promarca as regras do jogo são imperfeitas e “viciadas no sector do grande consumo a partir do momento em que o distribuidor possui a sua marca própria, pois o seu incentivo económico é favorecer a sua comercialização em detrimento das marcas dos fabricantes que são vendidas nos seus lineares”.

Em princípio, num sector económico competitivo e sem barreiras à entrada, a decisão de um distribuidor de comercializar produtos sob a sua própria marca não deveria causar preocupações de maior. No entanto, esta integração vertical dos distribuidores pode gerar problemas aos consumidores, aos fornecedores e à própria economia. Quando? “Quando actua de forma menos leal ou como gargalo (bottleneck), de tal forma que as empresas com as quais concorre dependem em grande parte dele para chegar aos consumidores. Pois bem, as grandes insígnias do retalho alimentar actuam como gargalos no mundo físico do carrinho de compras. A grande maioria dos consumidores vai regularmente ao seu supermercado de referência para encher o seu carrinho com vários produtos e um número limitado de cadeias concentram a maior parte dessas compras”.

Ignacio Larracoechea reforça que “as grandes insígnias perceberam, obviamente, que tinham o poder de ser o supermercado de referência para os consumidores na relação que mantêm com os seus fornecedores. E a resposta foi criar uma marca de distribuição que concorresse com esses fornecedores para explorar esse poder sabendo que a marca do fabricante não pode prescindir deles para chegar ao consumidor”.

Esse poder pode gerar a tentação de avançar para práticas menos leais, de que podem ser exemplos: “(s) a utilização dos segredos comerciais dos fornecedores de marca para avançar com uma cópia sob a sua própria marca; (s) a atribuição à sua própria marca de um espaço superior na prateleira; (s) a recusa às marcas do fabricante, muitas vezes já seus fornecedores regulares, do direito de competir com a sua inovação, ou (s) a aplicação de margens comerciais muito superiores às marcas do fabricante, criando assim um diferencial artificial do respectivo PVP relativamente às suas marcas próprias”

É legítimo referir que a situação que se verifica em Espanha, apesar das amplas semelhanças, tem, ainda assim, algumas diferenças em relação àquela que se vive em Portugal, onde os parceiros de retalho são bastante mais receptivos à inovação apresentada pelos fabricantes e onde não há relatos repetidos de situações de utilização indevida pelas insígnias dos segredos comerciais dos fornecedores.

Mas, ao invés, a questão dos diferenciais de margem é bastante mais notória em Portugal – veja-se o diferencial normal de preços entre marcas próprias e marcas de fabricante – o que, como o responsável da Promarca refere, é um dos comportamentos mais injustos no universo do grande consumo. Imagine-se como seria tão mais curto o diferencial de preços se esse tipo de prática não fosse corrente e como esse menor diferencial influenciaria a decisão de compra dos consumidores.

Em Portugal, a forma mais eficaz encontrada pelos fornecedores para combater esse alargado gap de preços passa pela realização de repetidas acções promocionais, que por via da redução dos PVP os coloca em níveis bastante mais próximos dos preços das marcas próprias e, como tal, mais atractivos aos olhos dos shoppers.

Mas, toda a bela tem senão. A saturação do modelo promocional (levamos já dez anos consecutivos de crescente promodependência) impede que o efeito multiplicador das vendas se concretize; as promoções implicam investimentos que têm que ser incorporados nas estruturas de custos dos fornecedores; a realização constante de promoções tem um efeito muito negativo ao nível da reputação das marcas e, finalmente, as próprias alterações ao quadro legislativo tendem a impedir a realização de promoções em ciclos muito curtos de tempo (quando ao mesmo tempo, muitas marcas realizam três em cada quatro vendas em regime promocional).

Ignacio Larracoechea recorda que o cenário de bottlenecks no retalho alimentar tem inúmeros paralelos com o poder das grandes plataformas de comércio digital e aqui, “as autoridades europeias entenderam que essas grandes plataformas como a Amazon, Google, Apple, etc. podem actuar como gargalos no mundo online e têm o poder de abusar das empresas que interagem com elas para atingir os consumidores digitais e discriminá-los contra os seus próprios produtos. Por esse motivo, o novo Digital Markets Act permitirá impor uma série de obrigações de conduta as plataformas denominadas 'gargalos digitais', incluindo a não discriminação de terceiros contra os seus produtos ou serviços” e perece óbvio que iniciativas equivalentes deveriam ser aprovadas relativamente ao retalho físico que actue de forma semelhante, porque esses comportamentos prejudicam não apenas os fabricantes, mas também os consumidores e a economia.

Por tudo isto, é fundamental trabalhar permanente e incansavelmente para promover uma concorrência mais justa entre marcas de fabricantes e marcas de distribuição, marcas com iguais direitos, mas também com iguais obrigações. Uma competição baseada na meritocracia e onde vençam as marcas que mais argumentos possuam para conquistar a atenção dos consumidores.