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Economia
SETE JANELAS PARA O HORIZONTE PÓS-COVID19
Não é fácil, quando se está ainda a lidar com o turbilhão de uma crise, pensar e projectar o pós-crise. Não é fácil, quando se está ainda a lidar com o turbilhão de uma crise, pensar e projectar o pós-crise.
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Mais difícil ainda quando se está perante um foco de crise inesperado, (ainda) curto no tempo, mas devastador no impacto. Ou quando ainda não ‘incorporamos’ as respectivas implicações na nossa vida diária pessoal, familiar ou profissional.

Sem querer parecer insensível, o que aí virá assemelha-se mais ao que aconteceria se tivesse havido um desastre natural à escala global (com a vantagem de não terem sido destruídas infraestruturas, acessos ou habitações) do que a uma réplica da crise de 2008 ou, por que nos é mais próximo no tempo e no espaço, o que correu em Portugal em 2010/2011 e anos subsequentes à intervenção da Troika. E a recuperação em Portugal e no nosso mercado dependerá tanto de aquilo que conseguirmos internamente fazer, como do que ocorrer em países e mercados estratégicos, seja enquanto destino dos nossos produtos, sejam, por exemplo, enquanto mercados emissores a nível de turismo.

Esta crise, pelos seus contornos, mostrou algumas fragilidades do mundo actual, fragilidades que colocam em causa valores individuais que pareciam conquistados e irrenunciáveis, como a liberdade, mobilidade, humanismo ou a própria democracia, mas também colocam em causa as relações internacionais com focos de autoritarismo e autismo, mas também de apelo ao nacionalismo e ao proteccionismo e que colocam em causa o bilateralismo e os próprios equilíbrios internacionais. Muito do que vai acontecer no Mundo Pós-Covid19, muito do que vai acontecer em Portugal, dependerá  de como forem reconstruídos esses equilíbrios, de como se processará o(s) ciclo(s) de recuperação económica, de como essa recuperação será mais homogénea ou assimétrica, de como, a Europa e, especialmente, a Zona Euro sobreviverá a este grande embate.

Colocando mais os olhos em Portugal e no ecossistema do grande consumo, há um conjunto de grandes janelas que nos permitem se não perpectivar em detalhe, pelo menos perceber onde - todos os que aí nos movemos – devemos concentrar o essencial da nossa atenção.

A começar pelo factor que esteve na origem desta crise e de que depende a respectiva ultrapassagem: a SAÚDE. Será ela a definir e condicionar como a recuperação económica se processará e qual a velocidade a que ocorrerá. A nível nacional e no plano internacional. A ultrapassagem dos medos gerados por esta pandemia, depende, em muito, do comportamento consciencioso dos portugueses, mas também da capacidade de resposta do serviço nacional de saúde, que, pelo menos até agora, tem sabido dar uma boa resposta às necessidades e ultrapassar as dificuldades e constrangimentos antecipadamente conhecidos. Num mundo pós-Covid em que o novo paradigma se estabelecerá combinando Segurança e Saúde, o reconhecimento interno e externo daquela resposta, pode permitir uma mais rápida retoma, seja pelo mais rápido restabelecimento do funcionamento da economia, seja pela reocupação, por Portugal, de um lugar cimeiro enquanto destino turístico, apesar das incertezas que incidem sobre esse sector.

De entre as muitas limitações e constrangimentos que esta crise gerou, a que mais implicações tem a nível económico e de mercado prende-se com um dos nossos valores mais fundamentais: a MOBILIDADE. A necessidade de uma elevadíssima parcela da população ser colocada em confinamento e os receios de contaminação associados aos actos de compra realizados em locais mais frequentados, tem, como não poderia deixar de ser, um efeito terrível no mercado, que a compra online não consegue, por si só, compensar. Bem longe disso. Será o progressivo regresso a uma mobilidade, ainda que mais tímida e controlada, um dos mais importantes factores para perspectivar a forma como decorrerá a recuperação do sector do grande consumo. Uma mobilidade limitada, seja por imposição administrativa, seja por nos sentirmos motivados para tal, funcionará sempre como um factor de inibição a essa recuperação.

A digitalização das nossas vidas, nas mais diferentes áreas é, de há muito, incontornável. Contudo, o DIGITAL parece ter ganho um impulso ainda maior com esta crise. Nas comunicações, na organização do trabalho, na reorganização das nossas vidas em casa, combinando profissão, ensino e lazer ou no acto de compra, a conexão digital é a principal forma de combater o isolamento que, noutras circunstâncias ou noutras épocas, o confinamento obrigatoriamente provocaria. Alguns destes efeitos, na área laboral, da educação ou comercial têm condições para saírem fortemente reforçados no final desta crise e gerar mudanças comportamentais importantes e com impacto nas empresas e no mercado. Mas terão também implicações em relação ao que será a necessidade de fornecimento de serviços dos operadores de telecomunicações, na disponibilidade de equipamentos, na relação entre colaboradores e empresas ou, como veremos de seguida, na organização das operações logísticas.

Esta crise veio colocar uma pressão inédita ao nível da SUPPLY CHAIN. Questões como o fecho de fronteiras e a criação de diversos obstáculos (e atrasos) ao transporte internacional de matérias-primas e produtos, a alteração abrupta do volume e do padrão de compra, em especial nas primeiras semanas de Março, as necessidades específicas de aprovisionamento de muitos retalhistas, a reorganização apressada das operações ou a transferência de uma parcela das compras das lojas para entregas ao domicílio, criou uma forte entropia no funcionamento da cadeia de abastecimento. Fornecedores, operadores logísticos e insígnias foram sabendo ultrapassá-las, com alguns atrasos nas entregas no caso do comércio online, mas sempre com a capacidade de dar ao consumidor uma razoável tranquilidade no que se refere ao acesso e disponibilidade a tudo o que é essencial. Não é fácil antecipar se o que ocorreu nestas semanas corresponde a algo atípico, mas perfeitamente entendível à luz da conjuntura actual, se algo com implicações futuras, mas parece certo que, por exemplo, a infraestrutura de distribuição capilar terá de sofrer um forte investimento e desenvolvimento no futuro próximo.

Saúde, mobilidade, digitalização e supply chain interferem, obviamente, com o funcionamento do MERCADO. Um mercado que vinha apresentando, nos meses que antecederam esta crise, um comportamento razoavelmente positivo, mas que com o que está a ocorrer nestas últimas semanas, deixa inúmeros pontos de interrogação a todos os operadores. Neste período convulsivo, houve aparentemente muitos ganhadores, mas também vários perdedores. Produtos, marcas, empresas, insígnias, canais tiveram vencedores e vencidos e, por vezes, situações muito díspares dentro de um mesmo universo. A paralisação do canal Horeca (e o impacto no canal grossista), gerou fortes problemas a todo o mercado, mas – como é fácil perceber – problemas mais profundos a quem depende fortemente desse canal. Mas mesmo o retalho convencional, ultrapassado o período de  euforia que se prolongou por pouco mais de duas semanas está já a enfrentar dificuldades, seja pela redução do número de visitas às lojas, seja pelo impacto, nas margens do negócio, de uma compra excessivamente programática e racionalizada, adaptada a um modo (ainda que pontual) de vida distinto do habitual. E esse impacto prolonga-se ao longo da cadeia, afectando produtores, fornecedores e marcas. É notório que o sector do grande consumo é, tradicionalmente, um dos mais resilientes em situações de crise, mas, na verdade, é fácil perspectivar que quebras substanciais no rendimento disponível das famílias e o forte impacto desta crise no futuro do turismo e do canal horeca são argumentos suficientes para adivinhar tempos muito difíceis nos próximos meses.

As MARCAS mostraram amplamente neste período que são muito mais do que a identificação de um qualquer produto. A forma como encararam as suas obrigações enquanto fornecedoras de bens mais ou menos essenciais foi inquestionável, mantendo as operações em funcionamento, não obstante os riscos que tal envolvia, direccionando as suas produções para os bens mais prioritários, desenvolvendo uma ampla acção de responsabilidade social, apoiando causas, campanhas, instituições e ajudando a cobrir inúmeras brechas do sistema. Mas é também verdade que ultrapassada esta fase mais fulminante da crise, as empresas que as detêm irão fazer contas à vida e terão que fazer opções relativamente à alocação dos seus orçamentos e não será descabido pensar que alguns dos que são os valores mais intrínsecos da marca, com destaque para a inovação e a comunicação, poderão ser fortemente prejudicados no curto/médio prazo. E que rendimentos disponíveis menores afastarão os consumidores de valores que se vinham nos últimos anos recuperando, como diversidade, personalização ou experiência de compra, regressando-se a uma competição especialmente assente nos preços.

Por tudo isto, é fácil perceber que o comandante do novo barco em que entraremos, quando sairmos desta fase de pandemia paralisante, será, como é sempre, o CONSUMIDOR. Um consumidor que está a passar nestas últimas semanas por uma prova de fogo, que é também uma prova de esforço e de resistência. Um consumidor a quem, legitimamente, foram gerados medos que demorarão a ser ultrapassados, medos que para alguns foram até confortáveis, mas que para outros geraram profundas alterações na forma como veem o seu futuro próximo, havendo até aqueles que, por esta altura, se sentem ameaçados pela simples presença de outro ser humano. Um consumidor que foi obrigado, abruptamente a reorganizar a sua vida, sendo conduzido para um conjunto de comportamentos, até aqui, atípicos. Estou convencido que o comportamento de consumo a que estamos, nesta altura, a assistir, não configura ainda qualquer ‘novo normal’, mas apenas ao ‘normal’ de uma situação de excepção, que motiva comportamentos de excepção. Mas não é ainda possível afirmar, sem receio de desmentido, que esta excepção não se converterá na nova regra. Parece-me, contudo, mais crível que saíamos deste período rumo a uma ‘regra’ distinta, mais estática, racionalizada e digital, que incorpora tudo o que referi anteriormente, do que rumo a um regresso à ‘regra’ pré-Covid.

Em qualquer dos casos, os próximos tempos serão muito duros, muitas famílias portuguesas terão saudades da situação pré-Covid e tenho poucas dúvidas que a nossa vida enquanto seres humanos será, enquanto não regressarmos à normalidade, menos rica, menos cheia e menos feliz.

Originalmente publicado na revista Grande Consumo, edição de Abril.2020