ALMA DE MARCA
Ideias e Reflexões #paramarcasquemarcam
Opinião
PAGAR DUAS VEZES PORTAGEM PARA PASSAR NA MESMA AUTOESTRADA
Informa a sempre útil Wikipedia que “um esquema em pirâmide conhecido também como pirâmide financeira, é um modelo comercial previsivelmente não sustentável...
TAGS

Informa a sempre útil Wikipedia que “um esquema em pirâmide conhecido também como pirâmide financeira, é um modelo comercial previsivelmente não sustentável que depende basicamente do recrutamento progressivo de outras pessoas para o esquema, a níveis insustentáveis”.

Por outro lado, essa mesma fonte refere que Friends With Benefits (em Portugal, Amigos Coloridos) é uma comédia romântica norteamericana de 2011, dirigida por Will Gluck e protagonizada por Justin Timberlake e Mila Kunis, com um argumento que gira em torno de Dylan (Timberlake) e Jamie (Kunis), que se reúnem em Nova York e, ingenuamente, acreditam que acrescentando sexo à sua amizade não vão gerar complicações na sua relação.

Aquele conceito e este filme, apesar de remeterem para realidades aparentemente distantes, têm bastante mais em comum com o tema deste artigo – as Alianças de Compradores – do que aquilo que provavelmente imaginarão.

Na base, estas vulgarmente designadas como Retail Alliances, poderão ser tomadas como centrais de compras, centrais de negociação ou centrais de pagamento, nacionais (abrangendo apenas a operação num único mercado) ou internacionais.  E se forem formadas com o objectivo de construção de sinergias e de eficiência financeira, eficiência logística e operacional ou de reforço da capacidade de aprovisionamento, podem ser um factor de melhoramento do funcionamento do mercado e dotar um parceiro com qualidades acrescidas na relação com os seus interlocutores ao longo da cadeia de abastecimento e, obviamente, com os consumidores.

Mas a realidade está bem longe desse ideal. Desde logo porque os benefícios canalizados para o consumidor, em termos de preços, sortido ou experiência de compra são, basicamente, nulos. Depois, porque da sua actividade não resulta nenhum benefício real para os restantes parceiros que operam ao longo da cadeia de aprovisionamento e, finalmente, porque a sua constituição não tem, na verdade, qualquer outro objectivo que não o de extracção de benefício financeiro junto dos respectivos fornecedores.

Poderá haver excepções momentâneas, quando, por exemplo, uma empresa mais remetida a mercados locais, possa – por via destas Alianças – aceder a clientes com os quais ainda não trabalha. Mas, num mercado cada vez mais aberto e fluido, essas serão efectivamente as excepções e não a regra, que apontam também para a concentração da compra.

Quem não está muito mergulhado no universo do grande consumo, provavelmente não saberá que hoje a complexa relação comercial entre fornecedores e distribuidores é estabelecida bem para lá da mera compra-e-venda de produtos. Hoje os fornecedores para manterem uma relação estável com os seus clientes (e simultaneamente concorrentes, com os seus produtos de marca própria) são impelidos a comprar uma profusão de serviços e a oferecer descontos que vão muito para lá do que, em outros sectores, a transacção ou a dimensão do cliente aconselharia.

Mas quem está no interior deste mundo sabe bem que no modelo negocial actual, o fornecedor é, implicitamente, cliente do seu cliente, e o distribuidor obtém uma muito elevada parcela da sua rentabilidade através daquilo que obtém por ser prestador de ‘serviços’. Em boa verdade, os papeis estão perigosamente invertidos: o fornecedor paga (e muito) para vender e o distribuidor recebe (e muito) para comprar.

Veja-se um exemplo recente deste tipo de alianças. Um retalhista adere a uma destas centrais. Da adesão não resultará qualquer adição de dimensão ou de quantidades adquiridas (desde logo porque as necessidades de produto não aumentam milagrosamente em virtude de um comprador se associar a uma aliança). Da adesão não resultará qualquer melhoria a nível logístico, operacional ou administrativo (por vezes até surgem burocracias adicionais). Da adesão, referem entrante e central, resultará apenas uma chamada centralização de pagamentos, a qual, na prática, não existe, havendo uma mera mudança da conta bancária pela qual é feito o pagamento e dela pode até resultar uma ampliação de prazos de pagamento para vários fornecedores.

O entrante reserva-se mesmo o direito de definir quais os produtos que são ou não abrangidos pelo acordo de adesão à central, e quer o sim expresso dos fornecedores à manutenção das vantagens obtidas com esta adesão, mesmo num cenário em que a aliança cesse e ele se retire. 

Não obstante tudo isso, é solicitada aos fornecedores uma vultuosa contribuição adicional relativamente à qual não é apresentada qualquer contrapartida realística. E este processo corre ao mesmo tempo que o entrante cria uma outra Central de Compras que, ao que se percebe, irá abranger a negociação exactamente com o mesmo conjunto de fornecedores, dando início a mais um processo de cobrança de benefícios, e assim sucessivamente.

As Retail Alliances ainda que muitas vezes de duração temporal pouco prolongada, surgem como uma forma de exponenciar essa capacidade de extrair vantagens financeiras sem que as mesmas sejam acompanhadas de contrapartidas negociais tangíveis, colocando custos de acesso adicionais onde já existiam custos de acesso muito elevados, adicionando verdadeiras portagens de acesso a auto-estradas que têm, elas próprias, portagens já definidas e de valor tantas vezes excessivo. Nada disto tem sido previamente escrutinado pelas autoridades públicas, por não se tratar de uma fusão ou aquisição, e aos fornecedores não resta outra alternativa senão aceitar essa contingência e esperar que eventuais exageros negociais possam vir a ser limitados ou prevenidos ao nível das legislações sobre práticas restritivas do comércio livre.

Daí as semelhanças com os Esquemas de Pirâmide e as Amizades Coloridas…

As Retail Alliances alimentam-se, basicamente, do recrutamento progressivo (e agressivo) de fornecedores, são estes que acabam por suportar os benefícios financeiros dos membros daquelas alianças, e que sustentam as ´máquinas operacionais’ que gerem estas centrais. A sua sustentabilidade pode ou não ser colocada em causa, em função do poder de mercado que obtêm, sendo que muitas alianças acabam por se diluir quando se verifica já não haver capacidade adicional de extracção, seja porque os fornecedores ainda não ‘atados’ são de pequena dimensão, seja porque surgem querelas ou conflitos na relação entre compradores, até porque, ao contrário dos Esquemas da Pirâmide, os ‘recrutados’ não podem esperar recuperar o seu investimento e obter alguma rentabilidade à conta dos incréus seguintes.

As Retail Alliances não são casamentos (que neste racional equivaleriam a aquisições e fusões) mas meras relações entre friends with benefits, estabelecidas não por ‘amor’ mas por interesses bem definidos e sem terem a preocupação de serem objecto de uma qualquer averiguação às verdadeiras razões da junção. Relações que podem terminar a qualquer momento, sem as chatices burocráticas de um ‘divórcio’ e com a convicção implícita de que as vantagens entretanto adquiridas não cessarão. Para além disso, têm o plus de que se pode saltar de parceiro para parceiro, de casa para casa, sem custos adicionais e, até, com o bónus de se fazer novas ‘festas’ para os amigos e pedir que estes lhes ofereçam novas prendas. 

No contexto actual, estas Retail Alliances são um dos principais focos de preocupação do universo FMCG, e para se perceber a amplitude dos braços destes ‘polvos’ basta ler o que a comunicação social especializada vai referindo sobre elas, sobre as movimentações dos seus participantes e sobre o impacto pernicioso da sua actuação. Talvez também por isso, as instâncias europeias e algumas autoridades nacionais da concorrência começam, finalmente, a dar-lhes a merecida atenção e a realizar acções de investigação consequentes.

Diz a doutrina fiscal que num Estado de Direito não se pode pagar imposto sobre imposto.

Logo veremos se esse mesmo princípio será também adoptado para o universo destas Retail Alliances.

Pedro Pimentel

Originalmente publicado na Revista Grande Consumo em 2021.07.19