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Opinião
O QUE SÃO LUCROS EXTRAORDINÁRIOS?
Nos últimos muito se tem falado sobre a windfall tax, o imposto sobre os lucros ‘caídos do céu’
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Nos últimos dias e depois da aprovação, em Conselho de Ministros, da proposta de lei que procede à regulamentação das contribuições de solidariedade temporária sobre os setores da energia e da distribuição alimentar, muito se tem falado sobre a windfall tax, o imposto sobre os lucros ‘caídos do céu’.

Para além do previsto no Regulamento Europeu, e, como refere o respectivo comunicado, num esforço de solidariedade adicional por parte do setor da distribuição alimentar, propõe-se a criação de uma contribuição temporária para que eventuais lucros excedentários possam ser canalizados para apoiar a população mais desfavorecida, nomeadamente por via do reforço dos instrumentos contra a fome, para garantir a execução da política de defesa do consumidor com o objetivo de assegurar um elevado nível de proteção ao mesmo, bem como para apoiar as empresas do comércio mais afetadas pelo aumento dos custos e da inflação a tornarem-se mais resilientes.

Este diploma tem o propósito de atenuar os efeitos económicos diretos que os elevados preços praticados nos setores referidos têm gerado nos orçamentos das entidades públicas, dos clientes finais e das empresas.

Mas na verdade o que são lucros extraordinários? São lucros adicionais ou lucros proporcionais em vendas adicionais? São apenas lucros mais elevados ou correspondem a uma rentabilidade mais elevada? E estamos a falar de lucros resultantes de uma inflação introduzida pelos operadores nos preços dos produtos que comercializam ou de uma inflação recebida e sentida ao longo de toda a cadeia de aprovisionamento? Há alguma verificação se – sequer – estão a ser passados para os preços ao consumidor todos os custos adicionais?

Quando o crescimento de vendas suplanta o crescimento do EBITDA correspondente, isso significa o quê? Porque, julgo, qualquer pessoa percebe que com inflação, uma igual rentabilidade, gera (em valor absoluto) resultados mais elevados.

Esta decisão, incidindo já na actividade e nos resultados de 2022, implica uma aplicação retroactiva, o que, à partida, gerará um risco de inconstitucionalidade, excedendo – para além disso – a decisão e o compromisso estabelecido a nível dos 27.

Acima de tudo, parece com esta decisão estar a tentar-se ‘matar’ tributariamente, eventuais dúvidas – há especulação por parte das insígnias do retalho alimentar? - que se resolveriam com a mera aplicação da legislação em vigor. E, para os mais esquecidos, o Estado dispõe da legislação necessária e suficiente para enfrentar situações eventuais de especulação e de práticas comerciais desleais (B2C) ou abusivas (B2B).

Para lá das razões jurídicas, poder-se-ia falar das razões políticas para este novo imposto, começando por lembrar que a medida não estava prevista na proposta de OE’2023 (apresentada na AR em 10/10) e é anunciada no Parlamento duas semanas depois e antes da discussão desse mesmo Orçamento de Estado. E que a mesma parece surgir como uma resposta quase instintiva a reclamações de determinadas forças políticas, depois de ter sido sucessivamente e repetidamente negada pelo próprio Governo, a começar pelo primeiro-ministro.

Parece, pois, uma decisão fortemente populista, aproveitando o natural descontentamento associado ao aumento de preços, querendo criar alguns culpados nacionais para justificar um fenómeno que é internacional e que, como sabemos, afecta todos os países, todos os sectores e todos os mercados, querendo confundir o consumidor tornando inflação sinónimo de especulação. E o facto de se referir a canalização das respectivas receitas para acções contra a fome, de defesa do consumidor ou de protecção dos estabelecimentos comerciais mais debilitados, não lhe dá legitimidade. Apenas lhe cria uma desculpa aceitável.

Mas, de facto, o Imposto sobre os lucros extraordinários faz algum sentido? Acima de tudo, há razões económicas válidas que o colocam em causa. A inflação não é gerada ou ‘inventada’ nacionalmente; é induzida internacionalmente. A inflação é transversal e global e, na generalidade dos mercados, a inflação que afecta o FMCG é mais elevada que a inflação ‘oficial’. No chamado grande consumo, aos custos com energia e combustíveis, adiciona-se toda a disrupção da cadeia de abastecimento, o agravamento dos custos logísticos e dos custos de materiais de embalagem, a escassez de matérias-primas, os maus anos agrícolas e as implicações na cadeia de fenómenos climatéricos.

Acresce que mais inflação não acompanhada da correspondente reposição salarial, leva a menos poder de compra o que gera o fenómeno de trading down: vende-se menos, de menor qualidade, de menor valor e, obviamente, de menor rentabilidade. A própria transferência acelerada do consumo de MDF para MDD (mais 500 a 700 M€ apenas em 2022) a que estamos, penosamente, a assistir, ilustra bem estre trading down

Para além disso, a disrupção das cadeias de abastecimento (pandemia + guerra) levaram à constituição de stocks que geram custos agravados, presentes e futuros, sem esquecer que a inflação é auto-fágica, tem uma forte inércia e implica que mesmo a estabilização ou até a redução de preços de alguns bens e serviços demora algum tempo até gerar uma efectiva inversão da cadeia de agravamento de preços.

Esta situação, sem a entropia causada pelo novo imposto, já está a gerar preocupantes implicações no mercado e leva à questão de quem, na prática, irá pagar este novo imposto, pois apenas por inocência, ou por forte desconhecimento de como o mercado efectivamente funciona, se pensará que o mesmo vai ser absorvido, integralmente, pela tesouraria dos retalhistas. Para além do imposto se poder converter numa forma de tendencialmente quebrar a solidariedade que existe actualmente no seio da cadeia de valor, com todos os operadores a perceberem que a repassagem integral dos agravamentos de custos (e sublinho a repassagem integral e não a excessiva) irá afastar o consumidor da compra. E sem compras, nem consumidores, o mercado pura e simplesmente não funciona.

Para acabar, mas não menos importante, avançar com a tributação significará desvalorizar ou desleixar a regulação. É uma decisão injustificada, criada sobre pressupostos em que não nos revemos. Os casos de especulação, existindo suspeitas, devem ser fiscalizados, perseguidos e severamente punidos, o Estado tem legislação adequada e ‘braços armados’ para a aplicar e, estamos convictos, a monitorização e a fiscalização são mais importantes que a tributação.

As deficiências do mercado (que, reconheçamos, continuam a existir) devem ser continuamente combatidas e não perpetuadas e o consumidor, no momento presente, mas também em qualquer outro período, beneficiaria sempre de um mercado mais leal, mais fluido, menos concentrado, mais concorrencial, com uma relação comercial mais equilibrada e com mais e melhor oferta e uma menor discriminação de produtos e de marcas. E nada disso ocorrerá, apenas empurrado por um qualquer novo imposto.