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Covid19
NA RENTRÉE, GRANDE CONSUMO TEM QUE SE PREPARAR PARA UM LONGO INVERNO
Estamos a dias do que se convencionou chamar de rentrée, no final de um verão estranho de um ano completamente atípico.
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Uma rentrée em que a confiança das famílias e das empresas regressou a níveis historicamente baixos. Uma rentrée em que a única certeza é esta névoa de incerteza que nos envolve…

Quando, em Março passado, o país praticamente parou, a economia, as empresas e as famílias foram surpreendidas por algo inesperado e de que pouco sabiam. Prepararam-se para um período de confinamento e de ‘espera’ que, previa-se, duraria algumas semanas.

Contudo, estamos já há praticamente seis meses neste limbo, em que nos vamos adaptando progressivamente a novos hábitos e rotinas, sempre com o regresso à normalidade como objectivo, mas com dúvidas crescentes sobre o que será o que aí vem. E este limbo tem vindo a gerar uma crescente inércia, uma ‘humidade’ pegajosa que vai enchendo de ‘ferrugem’ a nossa economia e a nossa sociedade.

Era óbvio, desde o início desta crise pandémica, que quanto maior fosse a sua duração, mais difícil seria fazer a reignição da economia, mais duras, penosas e vultuosas seriam as consequências para o país como um todo, para as famílias e para as empresas. E as consequências estão ser desastrosas: nunca tanto se gastou ou se irá gastar para tentar apagar alguns dos muitos fogos que esta crise provocou ou ainda provocará, nunca tão pouco se produziu e tão pouca riqueza (e receita fiscal) se gerou à boleia desta crise de saúde pública. Os números assustadores da economia no final do semestre, irão agravar-se nos próximos meses e a situação piorará ainda muito antes de voltar a melhorar.

As consequências são mais ou menos óbvias: apelo à injecção de mais meios para os serviços públicos, crescentes necessidades de apoios sociais, menor arrecadação fiscal, mais déficit e dívida pública, mais desemprego, menor rendimento das famílias, quebras significativas do consumo…

O paralelismo com a crise de 2011 e o período de intervenção da troika parece óbvio. Mas se ele pode gerar algum optimismo, recordando que a nossa economia, naquele período, recuperou de forma significativamente mais rápida do que as expectativas iniciais, vale a pena lembrar também que duas das ‘muletas’ mais importantes dessa recuperação - turismo e comércio externo - embora por razões diferente, dificilmente nos irão servir de apoio nos anos mais próximos.

O sector do grande consumo sofreu um forte embate no início da pandemia, com uma rápida aceleração das compras para fazer face ao incerto período de confinamento. A economia quase parou, mas as famílias mantiveram uma parte significativa dos seus padrões de compra, permitindo ao grande consumo ser uma das áreas mais activas e resilientes destes últimos meses. Mas os números são como o algodão e desde há várias semanas que se percebe a desaceleração das vendas.

Tem-se falado muito no crescimento galopante das vendas online, o que sendo correcto e muito potenciado pelos baixos níveis de partida, não compensa, nem de perto, nem de longe, as perdas sentidas noutros canais de comercialização. Apesar disso, a compra digital que começou por ser a alternativa viável para tempos de confinamento, ao estilo do ‘quem não caça com cão, caça com gato’, vem afirmando-se como canal de compra mais presente e utilizado para um núcleo crescente de consumidores… ou seja, o gato vai-se transformando paulatinamente em cão!

A experiência das crises recentes dá-nos capacidade de antecipar algumas facetas da evolução previsível no mercado. Num primeiro momento haverá uma manutenção dos níveis globais de consumo, mas com uma transferência sensível do consumo fora-do-lar para consumo dentro de casa. Diminuirão as refeições no exterior, aumentarão as refeições confeccionadas em casa, mesmo que para consumir no local de trabalho ou na faculdade. Ganha, em geral, o retalho moderno, perde especialmente o canal Horeca.

Num segundo momento, face à redução do rendimento disponível, dá-se uma compressão do consumo em valor. Compro os mesmos iogurtes, os mesmos litros de água ou as mesmas embalagens de detergente da louça, mas de gama inferior ou de mais baixo preço. Para, mais à frente, com o avolumar das dificuldades económicas, o retrocesso se verificar não apenas em valor, mas também em volume.

Este ciclo foi perceptível na crise da Troika e alimentou diversos movimentos do lado das marcas e do retalho: alteração das gamas de produto, multiplicação das referências de marcas de distribuidor, a explosão do fenómeno promocional, a redução clara da inovação-produto, o aumento dos investimentos em preço e prateleira, por contrapartida das compressões ao nível de inovação ou comunicação. O consumo patriótico assumiu forte protagonismo. A competição entre retalhistas foi levada ao rubro. Com o aumento do fenómeno do ‘desconto’ foi difícil perceber a diferença entre retalhistas convencionais e insígnias de hard discount. O fenómeno promocional (em especial a profundidade respectiva) permitiu aos fabricantes não perder tanto mercado como o expectável para as vulgarmente chamadas ‘marcas brancas’.

Mas nada disto impediu que o mercado, visto pelo somatório dos seus múltiplos canais, tivesse sofrido um impacto fortemente negativo, em volume e em valor, que motivou dificuldades em todos os elos da cadeia de abastecimento e muita fricção nas relações comerciais que se estabeleceram no seu seio, colocando ainda mais visíveis os desequilíbrios negociais existentes, e motivando, nos últimos anos, um conjunto de intervenções legislativas (aquém e além fronteiras) que tentaram minorar os efeitos perniciosos desses desequilíbrios.

Mas, por certo, haverá novas facetas na crise que estamos actualmente a viver.

Desde logo o já referido impacto negativo gerado pela implosão do turismo ou a emergência da compra online, mas também a forma como o consumo é impactado pelos receios dos consumidores em termos de saúde e mobilidade, as consequências da vulgarização e consolidação de fenómenos como o teletrabalho e o teleensino que propiciam a mudança de rotinas e percursos e podem provocar mudanças radicais na configuração dos principais centros urbanos, o desenvolvimento de múltiplos conceitos e produtos na área da higiene e protecção pessoal ou as restrições a todos os eventos de massas - desportivos, culturais, musicais - sempre indutores de momentos de aceleração do consumo.

Parece, pois, que esta rentrée traz nuvens negras e carregadas no horizonte, que o regresso à normalidade, que todos desejamos, surge nesta altura como um sonho ainda longínquo e que, pelo menos no sector do grande consumo, os desafios serão fortes e de elevado risco.

É pois fundamental que fabricantes, marcas e retalhistas saibam superar com arte e engenho, mas também com sentido de responsabilidade esta crise, cooperando entre si para impedir o colapso do mercado e desenvolvendo a capacidade de oferecer conjuntamente as soluções mais adequadas ao consumidor, o qual, no quadro de dificuldades que se adivinham, será ainda mais consciente, frugal e racional, exigirá as melhores propostas de valor para os produtos que consome, mas desenvolverá, também, um ‘radar’ que o levará a rejeitar as tentativas de o fazer comprar ‘gato por lebre’.

É igualmente fundamental que o Estado saiba também exercer a sua função regulatória, monitorizando e fiscalizando regularmente o funcionamento de mercado, não hesitando em utilizar as ferramentas previstas na lei sempre que o comportamento dos operadores assim o exija, mas, em simultâneo, apadrinhando e acarinhando os esforços de autorregulação que os vários sectores da economia entendam desenvolver e colocar em prática.

O comportamento responsável de todos os operadores será uma das ferramentas essenciais para devolver a confiança ao mercado, para fazer regressar a normalidade ao consumo, para que se consiga mais cedo ou mais tarde (e preferencialmente mais cedo) retornar ao ciclo de crescimento que se vinha assistindo nos últimos anos, seja do sector grande consumo, seja, em especial, da qualidade de vida dos consumidores.

Originalmente publicado no site do Público em 2020.08.31