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Covid19
MARCAS RESILIENTES NA CRISE, MARCAS SOB PRESSÃO NO PÓS-CRISE
Confessamos que se no final de 2019 nos tivessem dito que teríamos de enfrentar uma crise como esta, responderíamos que o Covid-19 iria causar problemas complexos na economia (...)
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Confessamos que se no final de 2019 nos tivessem dito que teríamos de enfrentar uma crise como esta, responderíamos que o Covid-19 iria causar problemas complexos na economia a nível global, no turismo ou na circulação das pessoas, mas estávamos a falar algo mais ou menos longínquo e de duração e impacto limitado. Uma mistura de vulcão islandês com a gripe das aves. Uma mistura de vulcão islandês com a gripe das aves.

Esta crise foi, pois. inesperada, inédita e, até há muito pouco tempo, praticamente impensável. É a primeira verdadeira crise da era da globalização, com efeitos e impactos à escala global. E pela forma como, de modo fulminante, nos atingiu, obriga-nos a questionar fundamentos, a repensar valores, a reorganizar estilos de vida, a alterar comportamentos e mesmo a colocar em causa verdades que tínhamos até aqui como consolidadas e irrenunciáveis.

No quadro da Centromarca temos vindo a acompanhar os impactos deste temporal nas marcas e nos mercados, no consumo e nos consumidores. Tentamos, ao longo deste período, tranquilizar os cidadãos relativamente ao acesso aos bens mais prioritários, chamar a atenção para o trabalho de retaguarda que fornecedores e toda a cadeia de aprovisionamento nunca pararam de realizar para tornar as nossas vidas mais facilitadas, chamar a atenção para o compromisso e a responsabilidade social das empresas neste momento tão delicado, apelar a um regresso responsável mas célere à normalidade possível.

ONDE ESTAMOS

Julgamos poder afirmar-se, sem grande margem de discussão, que toda a cadeia, da produção primária à transformação industrial, das operações e logística ao retalho, se comportou de forma admirável e inexcedível, respondendo com elevados sacrifícios (pessoais e estruturais) às enormes exigências colocadas pela situação. As várias análises colocam os sectores do Retalho Alimentar e das indústrias alimentares e de outros bens de grande consumo como entre aquelas que melhor responderam à crise, mas também entre aquelas que, aparentemente, terão sido menos penalizadas por esta pandemia.

Mas não terá sido bem assim... O sector teve de enfrentar o encerramento total de um dos mercados mais importantes para os seus produtos: o canal Horeca. Por outro lado, se houve produtos ou famílias de produtos presentes no retalho alimentar que se converteram em autênticos campões de vendas, outros houve que abandonaram quase completamente os cabazes de compras das famílias portuguesas. A compra quase totalmente programática pelo consumidor e a racionalização do sortido pelo retalho, a bem do melhor funcionamento da operação logística e da reposição nas lojas, acabou por beneficiar famílias de produtos em detrimento de outros, de beneficiar marcas e fornecedores em detrimento de outros.

A forte procura nas lojas físicas, a tentativa de evitar aglomerações excessivas ou a fuga aos riscos de contágio, motivaram muitos consumidores a migrar as suas compras para o universo online. Num primeiro momento, a procura excessiva acabou por não permitir que a resposta tivesse a mais desejada. Contudo, a resposta foi-se ajustando e os tempos de espera foram sendo comprimidos, levando mais e mais consumidores a encaminharem-se para este canal.

Mesmo no seio do retalho, há muitas diferenças relativamente ao sucesso das suas estratégias, com algumas insígnias a darem uma melhor resposta do que outras, com alguns formatos (especialmente os de proximidade) a assumirem maior protagonismo do que outros, e com um vencedor algo inesperado: o comércio tradicional, em especial aquele que melhor se adaptou ao contexto e exigências do consumidor neste período de confinamento.

Por isso, sendo o comportamento do sector do grande consumo globalmente positivo no meio de todo este turbilhão, é fácil perceber que existem fortes assimetrias. Há alguns vencedores e vários vencidos. Alguns fizeram o seu ano em meia dúzia de semanas, enquanto outros precisariam que o ano tivesse muito mais semanas para conseguirem fazer um exercício económico decente.

JANELAS DE OBSERVAÇÃO

Não é fácil, quando se está ainda em plena crise, pensar e projectar o pós-crise. Mais difícil ainda quando se está perante um fenómeno inesperado, (ainda) curto no tempo, mas devastador no impacto. Ou quando ainda não ‘incorporamos’ as respectivas implicações a nível pessoal, familiar ou profissional.

AIinda assim, comecemos pelo factor que esteve na origem desta crise e de que depende a respectiva ultrapassagem: a SAÚDE. Será ela a definir e condicionar como a recuperação económica se processará e qual a velocidade a que ocorrerá. A nível nacional e no plano internacional. Num mundo pós-Covid em que o novo paradigma se estabelecerá combinando Segurança e Saúde, o reconhecimento interno e externo da capacidade de resposta de Portugal, pode permitir uma mais rápida retoma, seja pelo mais rápido restabelecimento do funcionamento da economia, seja pela reocupação, pelo nosso país, de um lugar cimeiro enquanto destino turístico, apesar das incertezas que incidem sobre esse sector.

De entre as muitas limitações e constrangimentos que esta crise gerou, a de maior impacto a nível económico e de mercado prende-se com a MOBILIDADE. O confinamento e os receios de contaminação associados aos actos de compra realizados em locais mais frequentados, tem um efeito terrível no mercado, que a compra online não consegue, por si só, compensar. Bem longe disso. Será o progressivo regresso a uma mobilidade, ainda que mais tímida e controlada, um dos mais importantes factores para perspectivar a forma como decorrerá a recuperação do sector do grande consumo. Uma mobilidade limitada, seja por imposição administrativa, seja por constrangimento psicológico, funcionará sempre como um factor de inibição a essa recuperação.

O DIGITAL está hoje incorporado nas nossa vidas, mas parece ter ganho um impulso ainda maior com esta crise. Nas comunicações, na organização do trabalho, na reorganização das nossas vidas em casa, combinando profissão, ensino e lazer ou no acto de compra, a conexão digital é a principal forma de combater o isolamento e nos ligar com o mundo exterior. Alguns destes efeitos, na área laboral, da educação ou comercial têm condições para saírem fortemente reforçados no final desta crise e gerar mudanças comportamentais importantes e com impacto nas empresas e no mercado. Mas terão também implicações em relação ao que será a necessidade de fornecimento de serviços dos operadores de telecomunicações, na disponibilidade de equipamentos, na relação entre colaboradores e empresas ou, como veremos de seguida, na organização das operações logísticas.

Esta crise veio colocar uma pressão inédita ao nível da SUPPLY CHAIN. Questões como o fecho de fronteiras e a dificuldades associadas ao transporte internacional, a alteração abrupta do volume e do padrão de compra, as alterações das necessidades específicas de aprovisionamento de muitos retalhistas, a reorganização apressada das operações ou a transferência de uma parcela das compras das lojas para entregas ao domicílio, criou uma forte entropia no funcionamento da cadeia de abastecimento que fornecedores, operadores logísticos e insígnias foram sabendo ultrapassar. Contudo, parece certo que, por exemplo, a infraestrutura de distribuição capilar terá de sofrer um forte investimento e desenvolvimento no futuro próximo.

Saúde, mobilidade, digitalização e supply chain interferem, obviamente, no funcionamento do MERCADO. Um mercado que vinha apresentando, nos meses que antecederam esta crise, um comportamento razoavelmente positivo, mas que, com o que está a ocorrer neste período, deixa inúmeros pontos de interrogação a todos os operadores. O retalho convencional está já a enfrentar dificuldades, seja pela redução do número de visitas às lojas, seja pelo impacto, nas margens do negócio, de uma compra excessivamente programática e racionalizada, adaptada a um modo (ainda que pontual) de vida distinto do habitual. E esse impacto prolonga-se ao longo da cadeia, afectando produtores, fornecedores e marcas.

O sector do grande consumo é, tradicionalmente, um dos mais resilientes em situações de crise, está já, apesar disso, a ser fortemente impactado, pelas quebras substanciais no rendimento disponível das famílias e o forte impacto desta crise no futuro do turismo e do canal horeca e sê-lo-á mais ainda nos próximos meses.

As MARCAS mostraram amplamente neste período que são muito mais do que a identificação de um qualquer produto. A forma como encararam as suas obrigações enquanto fornecedoras de bens essenciais foi inquestionável, mantendo as operações em funcionamento, não obstante os riscos que tal envolvia, direccionando as suas produções para os bens mais prioritários, desenvolvendo uma ampla acção de responsabilidade social, apoiando causas, campanhas, instituições e ajudando a cobrir inúmeras brechas do sistema. Mas é também verdade que ultrapassada esta fase mais fulminante da crise, as empresas que as detêm irão fazer contas à vida e terão que fazer opções relativamente à alocação dos seus orçamentos e não será descabido pensar que alguns dos que são os valores mais intrínsecos da marca, com destaque para a inovação e a comunicação, poderão ser fortemente prejudicados no curto/médio prazo

Por tudo isto, é fácil perceber que quem marcará o rumo e o ritmo, será, como é sempre, o CONSUMIDOR. Um consumidor que está a passar nestas últimas semanas por uma prova de fogo, que é também uma prova de esforço e de resistência. Um consumidor a quem, legitimamente, foram gerados medos que demorarão muito tempo até serem totalmente ultrapassados. Um consumidor que foi obrigado, abruptamente a reorganizar a sua vida, sendo conduzido para um conjunto de comportamentos, até aqui, atípicos mas que, poderão assumir-se como ‘normais’ no futuro mais próximo

PARA ONDE VAMOS

Não podemos esquecer que estamos ainda em plena crise. Uma crise de que temos a percepção exacta do quando começou, mas que – nesta altura – ninguém se aventurará a prever exactamente quando terminará. Isso não invalida, duas verdades inquestionáveis: foi a saúde que nos ‘colocou’ nesta crise e será a saúde a ditar a forma e a velocidade do regresso a uma progressiva normalidade e,por outro lado, quanto mais longo for o período da crise sanitária, mais profundos e nefastos serão os seus impactos, mais difícil e demorada será a recuperação económica que necessariamente se lhe seguirá.

Portugal vai atravessar, seguramente, uma nova crise económica de dimensão ainda incalculável… e não será o único país onde tal ocorrerá. Aos problemas recorrentes da nossa economia, somam-se agora os provocados por esta paralisia pandémica, como são os casos do definhamento do mercado interno, do golpe profundo no turismo, da paralisação e potencial destruição de uma parte importante do canal Horeca, da dificuldade acrescida de colocação dos nossos produtos em mercados igualmente em crise, com menor poder aquisitivo e onde se multiplicam esquemas proteccionistas.

Não são, pois, difíceis de antecipar, consequências muito negativas a nível do emprego e de rendimento disponível das famílias e a multiplicação dos fenómenos de pobreza, mais envergonhada ou mais visível aos nossos olhos.

A pressa em definir um ‘Novo Normal’ parece apressada e prematuro.  Afinal estamos perante uma situação atípica e excepcional e os nossos comportamentos, hoje, são típicos duma situação atípica, expectáveis numa situação de excepção.

Um dos seus traços principais – a migração para o digital e a explosão do via e-commerce - também deixa pontos de interrogação. Afinal, no universo do grande consumo, a base de partida era muito baixa: não mais do que 1% do total das vendas. Para além disso, os dados mostram-nos que as taxas de crescimento das compras electrónicas não diferiram substancialmente das taxas equivalentes relativamente às das compras físicas. Recordemos, nesta altura apenas 3 dos 10 maiores retalhistas da distribuição alimentar em Portugal possuem canal digital activo. Por isso, devemos esperar pelo pós-crise para aferir a dimensão efectiva desta alteração de comportamento, sendo que não espantaria que este fosse o 'gatilho' que há anos se fala para dinamizar, em Portugal, o comércio online ao nível do retalho alimentar. Seja porque muitos novos consumidores se iniciaram agora neste canal, seja porque, abrindo-se esta oportunidade, novos operadores serão tentados a desenvolver as suas próprias estratégias online.

A nível comportamental, parece simples prever que vamos ser mais assépticos e cautelosos, mais estáticos e confinados, mais digitais, racionais e programáticos e, infelizmente, vamos ser menos sociais, mais isolados, mais angustiados. Mais especificamente no universo do grande consumo, o consumidor nacional terá os seus mais e os seus menos: mais compras online, mais consumo em casa, mais recurso a delivery services, mais produtos convenientes, mais preocupação com higiene e limpeza. Menos visitas às lojas, menos compras de impulso, menos consumo out-of-home, menos compra de produtos indulgentes, menos aquisição de produtos relacionados com a nossa vida no exterior.

Perante isto e não obstante isto, as marcas têm de se mostrar, uma vez mais, verdadeiros companheiros de viagem dos nossos concidadãos. E esse 'casamento' tem de ser para os bons e para os maus momentos. Mostrando humildade e relevância e partilhando as dificuldades dos consumidores. Deverão gerar alternativas - novos produtos, inovações - que permitam manter ou melhorar a nossa qualidade de vida, comunicando de uma forma positiva, para começar a acender a luz no fundo do túnel.

Sendo que isso terá de ser feito num período em que as empresas irão enfrentar uma situação económica mais complicada e um mercado em profunda depressão. Um mercado em que a competição será ainda mais acesa e muito assente em investimento no ponto de venda e no linear. Um mercado em que a redução de valor motivará um aquecer de tensões e o reacender a tentação de utilizar atalhos, ética e legalmente reprováveis, para reconstruir resultados.

Em conclusão, o que estará realmente em causa será a capacidade das marcas de construir devidamente este equilíbrio entre preço, prateleira e promoção, de um lado, e inovação, responsabilidade social e comunicação, do outro. E essa capacidade será o que as colocará no topo das prioridades na cabeça, no coração e na carteira dos consumidores e que distinguirá quais as que, no final desta crise, melhor terão ultrapassado as enormes dificuldades que se estão e irão gerar.

Originalmente publicado no livro “Esperança e Reinvenção: Ideias para o Portugal do Futuro”