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Opinião
MARCAS PRÓPRIAS: UM JOGO DE ESPELHOS
No meio de todo o turbilhão noticioso associado à aplicação de um IVA zero a um cabaz de produtos alimentares essenciais, passou algo despercebido um conjunto de novas informações disponibilizadas ao mercado
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No meio de todo o turbilhão noticioso associado à aplicação de um IVA zero a um cabaz de produtos alimentares essenciais, passou algo despercebido um conjunto de novas informações disponibilizadas ao mercado, algumas delas associadas ao crescente peso das marcas próprias na cesta de compras das famílias portuguesas.

Como num jogo de espelhos, temos os factos e as percepções.

Os factos dizem-nos que, retirado o efeito-espuma da inflação, o mercado perdeu nos últimos seis meses entre 5 e 7 pp ao nível de vendas em volume, que há um evidente downtrading das compras, com uma descida de vários degraus na escada de valor das escolhas dos consumidores e que, no último ano, a transferência, nas compras das famílias, dos produtos de marca de fabricante para os produtos de marca própria, rondou os 10pp.

Temos as percepções, a primeira das quais é a de que este comportamento do consumidor nada tem de surpreendente no presente contexto económico. Afinal. a quebra do poder de compra justifica razoavelmente qualquer um daqueles factos. E, relativamente ao crescimento acelerado das marcas próprias, uma outra percepção, que junta o mais baixo preço, a evolução significativa da qualidade das respectivas gamas de produto e a disponibilidade garantida nas prateleiras (ou nos lineares ‘digitais’), tudo factores que ajudam a decisão do shopper.

Um novo dado: o crescimento da quota das chamadas insígnias de sortido curto, assentes numa fortíssima componente de marca própria, ajudam a empurrar o peso, para o total do mercado, dessas marcas no conjunto das compras dos portugueses. E uma nova percepção: esse crescimento de quota leva os restantes competidores, de sortido mais alargado, a responder a essa pressão, dando ainda mais atenção - em preço, em segmentação, em promoção e em comunicação - às, perdoem a redundância, suas próprias marcas próprias.

O que nos leva a um novo facto: se é verdade que o peso das marcas próprias nas vendas totais (em valor) é completamente distinto – e muitíssimo mais elevado – nas cadeias de sortido curto como a Mercadona (85%), Lidl (73%) ou Aldi (60%), os maiores crescimentos nessa quota interna de vendas provêm das insígnias mais convencionais como o Intermarché (+11pp face a 2020), Sonae (+8pp face a 2020) e mesmo o Auchan, que continua na cauda do pelotão (ou seja é, de entre os principais operadores, a insígnia mais ‘marquista’), mas, ainda assim, com +6pp de marca própria face a 2020.

Destes valores, resultam duas constatações…

Uma primeira que se percebe da diferença de quota de marca própria aferida via MarketTrack da Nielsen (que mede as vendas no retalho) ou via HomeScan da Kantar (que mede as compras de um robusto painel de lares portugueses), e que aponta para que uma parcela cada vez maior de marca de distribuidor seja direccionada, não para as compras para casa, mas directamente para o canal Horeca.

A segunda, que cruza peso e crescimento da marca própria com as quotas de mercado das diferentes insígnias e que mostra que as cadeias que mais crescem a sua quota interna de vendas de marca ‘branca’ perdem todas peso no mercado, o que faz supor que a redução do leque de escolha e a aposta acrescida nos seus próprios produtos não as faz recuperar nem consumidores, nem vendas.

Ainda mais uma percepção: o crescimento da rede comercial das insígnias do moderno retalho tem sido assente, muito especialmente, em lojas de proximidade, espaços, por norma, de menor dimensão, de sortido mais comprimido e onde o peso das marcas próprias é proporcionalmente mais elevado, em detrimento da presença nas prateleiras das marcas de fabricante (em especial das segundas e terceiras marcas).

Somemos agora dois novos factos e um aspecto de matriz mais económica. Facto: ao contrário do que normalmente se pretende dar a entender, o grande bolo das marcas próprias é produzido, não pelas marcas líderes, mas ou por empresas integralmente dedicadas ao fabrico dos produtos das marcas das insígnias ou por empresas que, à conta da perda de espaço para as suas próprias marcas, passam a, por opção ou por falta dela, a dedicar um espaço crescente das suas linhas produtivas ao fabrico das marcas dos clientes.

Outro facto: a crise que actualmente atravessamos é essencialmente gerada por uma deficiência da oferta e não tanto por uma aceleração da procura e a inflação actual resulta, acima de tudo, da escassez de vários bens, especialmente associados à produção primária, a que se junta uma muito forte disrupção das cadeias de abastecimento, de que a guerra na Ucrânia é apenas um dos factores de aceleração, e não é tão evidente uma pressão do lado do consumidor, cada vez mais programático e frugal.

Entra aqui a teoria económica: num cenário de escassez de oferta, a produção ‘marginal’ (como, em muitos casos, é a das marcas próprias) tende a ser mais cara que a produção ‘normal’, ou, se quiserem, em períodos de excedente de oferta as marcas próprias aproveitam as necessidades de escoamento de produtores e fabricantes para comprar em baixa, enquanto em períodos como o actual, seria normal que a sua evolução de preços fosse proporcionalmente mais rápida que a das marcas de fabricante.

Voltamos aos factos: um trabalho divulgado pela DECO na semana passada mostra, em linha com referido atrás, que, para um cabaz de produtos continuamente analisado, a velocidade de crescimento dos preços dos produtos de marca própria foi quase três vezes mais rápida (32% vs. 13%) do que o das marcas de fabricante.

Ainda do mesmo trabalho da DECO resulta um outro facto: apesar da muito mais rápida aceleração dos preços da marca própria, o respectivo Index (entendido como o preço da marca própria versus a de fabricante, sendo esta correspondente a 100%) situa-se, no final de 2022, em 50,5%, ainda assim, algo acima do mesmo Index no final de 2021: 43,2%. Mas quando olhamos para o diferencial do custo desse mesmo cabaz, em valor absoluto, aquela variação de velocidades de crescimento praticamente não se faz sentir (apenas 1,9%), o que se justifica pela diferença tão elevada dos valores de partida.

Mais um facto: este Index (50,5%) compara com um valor próximo de 70% em Espanha e a rondar os 75% em França ou na Alemanha, sendo que Portugal tem, desde há muitos anos, o mais baixo valor de toda a Europa Ocidental e dos mais baixos de entre os que possuem dados para avaliar esta ‘relação-de-forças’.

E isso leva-nos a uma derradeira questão: porque é tão baixo esse Index em Portugal? Porque é que o diferencial de preços é tão mais elevado em Portugal em comparação com os países vizinhos? Será a qualidade dos produtos suficientemente distinta para permitir custos de aquisição tão mais baixos?  Estarão as empresas fornecedoras, em Portugal, a praticar preços desfasados da realidade europeia? Ou será a distribuição nacional capaz de adquirir os seus produtos a custos tão inferiores que lhes permita colocar as suas marcas na prateleira com tão elevados gaps de preço?

Diz o provérbio que ‘quando a esmola é grande, o pobre desconfia’, mas de forma algo estranha, raramente ouvimos colocar a questão sobre como se constrói e como se justifica aquele diferencial de preços e de como ele é, em si mesmo, a razão por que tantos consumidores são encaminhados para a compra daquelas marcas próprias, obviamente, em detrimento da aquisição das marcas de fabricante.

Apesar de tantas vezes repetidos, são muitos os que, nos mais diferentes círculos, continuam sem perceber, ou que aparentemente não fazem grande esforço em perceber, o que significa o duplo papel de cliente e concorrente, qual o impacto do diferencial de custos de acesso e de permanência na prateleira entre umas marcas e outras, ou como muitas insígnias desenvolvem a sua equação de rentabilidade em cima de um assumido princípio de subsidiação cruzada, sempre a favor das suas marcas e, mesmo precisando delas, sempre em penalização das marcas dos fabricantes.

E era interessante que quando insistentemente se prescrevem estas marcas próprias e quando se conforta o consumidor com a indicação de que ao adquiri-las ele está a realizar uma compra inteligente, se percebesse também que é o valor fundamental da liberdade de escolha que está a ser minado, que há um claro desincentivo à inovação e que, como mostra a cada vez maior dificuldade em lançar produtos realmente diferenciados, a inovação como motor do mercado está a ficar ‘gripada’ e que, acima de tudo, essa prescrição, ainda que sob o halo da poupança proporcionada ao consumidor, não deixa de ser uma forma de fechar-os-olhos às práticas que permitem que essa diferença se cristalize e que o mercado continue artificialmente inclinado em favor das marcas dos distribuidores.