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JMJ: EXCELENTE PARA LISBOA, BOA PARA O PAÍS, NÃO TÃO POSITIVA PARA O FMCG
Foram tornados públicos na semana passada os primeiros dados de mercado relativos à quadrisemana que abrange o período em que ocorreu a JMJ. E os resultados não são especialmente positivos.
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Parece hoje irrefutável afirmar que a Jornada Mundial da Juventude, que decorreu em Lisboa no início de Agosto, com a presença do Papa Francisco, foi um grande êxito.

A forma como aquela imensa mole humana se organizou, movimentou e conviveu foi um exemplo sem paralelo naquilo a que estamos habituados a assistir nos grandes eventos de massas que ocorrem em Portugal e por esse mundo fora.

No quadro de um evento que tem o seu quê de caótico, dada a imprevisibilidade, quase até ao último momento, do número de pessoas que estaria presente (em especial em relação a quantos acompanhariam os que estavam efectivamente inscritos), as coisas correram muito bem, ajudadas pela forma cordata e solidária visível em todos os participantes, algum planeamento e um quadro climatérico favorável (seco e sem temperaturas excessivas).

Apesar das naturais dificuldades que tão grande concentração de pessoas motiva na mobilidade da cidade e de muitos terem, certamente, aproveitado para sair da Capital naqueles dias, o impacto da Jornada extravasou claramente o núcleo dos participantes, envolvendo muitas pessoas, muitas famílias, muitas entidades… na recepção e alojamento dos participantes, no apoio à sua presença, enquanto voluntários para inúmeras acções.

E esse efeito sentiu-se também pelo país fora, com a chegada antecipada de muitos participantes e o seu acolhimento e alojamento por inúmeras paróquias de norte a sul. Aproveitando alguns dias de férias no final de Julho, no sul do país, cruzei-me com animados peregrinos provenientes das mais diferentes origens… algumas bem distantes: Coreia do Sul, Etiópia, Iraque, Paraguai, Perú, Nova Zelândia, que, por um punhado de dias, deram cor e diversidade, mas também corpo, tempo e sentido à vida acelerada em que estamos permanentemente mergulhados.

A JMF foi, pois, um grande êxito para Lisboa que foi o centro do evento, mas também o centro de uma grande operação comunicacional e mediática que colocou a capital portuguesa no centro do mundo e por boas razões. E foi também um êxito para o país que soube acolher e vibrar com um evento de cariz religiosa, mas que mau grado o esforço de alguns, não foi, nem perto disso, fracturante para a sociedade. Um êxito que também conseguiu demonstrar uma vez mais que, mesmo ‘à portuguesa’, somos capazes de organizar eventos desta magnitude.

Sobre a simpatia, empatia e mensagem que o Papa Francisco nos trouxe já muito foi dito e o ‘nosso’ Francisco Teixeira, muito melhor do que eu, explica ao que assistimos no texto ‘Francisco, como o Papa’, publicado no ECO e em que, a dada altura, escreve: "foi uma semana em cheio (...), a percorrer as aulas práticas que decorreram em campo aberto nas ruas de Lisboa. Aulas de bem comunicar, de como criar uma marca, de como marcar e mobilizar uma audiência. Aulas de impacto, aulas de criatividade".

A vinda a Portugal de centenas e centenas de milhares de peregrinos e seus acompanhantes gerou também uma forte expectativa em relação ao impacto económico que a Jornada Mundial da Juventude geraria. Porventura, para ‘vender’ melhor alguns investimentos realizados e ‘calar’ polémicas em seu torno e para ‘justificar’ os incómodos que, apesar de tudo, seriam introduzidos na cidade e no país (mobilidade, controlo de acesso, controlo de fronteiras,…) , os responsáveis – governativos e autárquicos – fizeram questão de repetir as vantagens económicas que resultariam do evento.

Por desconhecimento ou por conveniência, não parece ter sido antecipado que estaríamos perante uma mole humana que é bastante diferente daquela a que associamos ao turismo mais ou menos massificado. Um turismo que normalmente deixa atrás de si um rasto de receita e riqueza – na hotelaria, na restauração, no comércio, nas entidades de matriz recreativa ou cultural,.. – que, todos percebemos, são fundamentais para o país e que ajudam a compensar os custos da saturação de algumas localizações ou do sobrecusto que os portugueses acabam por ter de pagar para aceder a bens e serviços customizados em qualidade e valor para quem nos visita.

O sucesso de um evento não se deve apenas medir pelo ângulo do retorno económico gerado. Há aspectos percepcionais, culturais, de cidadania ou reputacionais que podem e devem também ser colocados nos pratos da balança e foram exactamente estes – e não tanto os económicos – que levaram a que hoje o cômputo da Jornada seja muito positivo e apelidado como um grande êxito. Aspectos que, certamente, alavancarão outros e que ajudam a consolidar Portugal como destino de referência, que combina infraestruturas e amenidades, com pacifismo, segurança, tranquilidade, cultura, história, bem-estar e bem-receber,

Julgo que quem, como eu, vive em Portugal, por vezes não alcança como algumas destas características ajudam tanto ou mais o turismo e a atrair quem nos visita, do que a supostamente vencedora combinação sol-praia-vinho-gastronomia.

Mas regressando à JMJ e ao seu impacto económico, parece ser hoje seguro afirmar, que – como foi fácil observar – o racional de quem nos visitou por aqueles dias é bastante diferente do normal turista que vem a Portugal. Os participantes fizeram, na sua larguíssima maioria, uma vida muito mais espiritual do que material, muito mais frugal do que consumista e isso, obviamente, não impactou tanto como se previa a hotelaria, a restauração ou o comércio. Terá até, pela antecipação da grande concentração de pessoas que geraria, afastado alguns potenciais turistas e levado muitos portugueses (em especial na Grande Lisboa) a procurar, por esses dias, outras paragens,

O Banco de Portugal indicou mesmo que "a economia do país sofreu um abrandamento significativo (...) por ocasião da Jornada Mundial da Juventude". Os dados divulgados mostram que aquele período coincidiu com uma queda nas atividades económicas, incluindo uma diminuição de dormidas em hotéis e gastos em restaurantes e uma queda no consumo de bens e serviços.

Segundo aquela instituição "a estadia dos peregrinos em Portugal refletiu-se diretamente em diversos setores. O setor do transporte registou uma ausência de movimento em serviços TVDE, com os peregrinos a optarem por outros meios para se deslocarem. O do vestuário e calçado, por sua vez, teve uma diminuição nas compras, tendência essa que se espalhou para outros bens de consumo. Os hotéis e alojamentos não atingiram as taxas de ocupação normais para o período em que ocorreu a JMJ, indicando um impacto claro na indústria hoteleira. O setor da restauração também sofreu um decréscimo na afluência, especialmente os estabelecimentos mais tradicionais. No entanto, alguns cafés e restaurantes tiveram breves picos de vendas, especialmente aqueles que se associaram ao evento e serviram menus destinados aos peregrinos. O turismo também sofreu durante o período da JMJ e a prova disso mesmo foi o menor fluxo de turistas, o que não é costume para esta época de verão, que é o ponto alto para o setor em Portugal e que costuma esgotar hotéis e alojamentos ano após ano".

Este impacto foi igualmente sentido no universo FMCG, o qual é, como todos sabemos, afectado não apenas pelas compras directas de quem nos visita, como pelas dinâmicas de todo o canal Horeca.

Foram tornados públicos na semana passada os primeiros dados de mercado relativos à quadrisemana que abrange o período em que ocorreu a JMJ. E os resultados não são especialmente positivos. O crescimento ocorrido em relação ao período homólogo de 2022 foi de +9,7%, que compara com +15,6%, +16,4%, +13,0% e +11,5% das quadrisemanas exactamente anteriores. Pode referir-se que o comparativo é feito com um período especialmente forte do ano transacto (+15,8%), mas não deve esquecer-se que estamos a falar de dados em valor e que a inflação ocorrida nesta tipologia de produtos supera claramente os 9,7% do crescimento deste período, pelo que é lícito concluir-se que, apesar de termos tido em Portugal mais um milhão e meio de peregrinos durante entre uma e duas semanas, os volumes consumidos apresentam um evidente retrocesso face ao mesmo período do ano passado, um período de turismo ‘normal’ para esta época do ano.

Mesmo ao nível das bebidas em que, não obstante a frugalidade do consumo de quem acompanhou a JMJ, seria de esperar um crescimento um pouco mais substancial, os números são muito pouco efusivos e, também aqui, muito mascarados pelo efeito da inflação.

Finalmente, é sabido que diversos retalhistas fizeram – e muito bem – um abastecimento preventivo de um conjunto substancial de produtos, antevendo os picos de consumo que poderiam ocorrer durante a JMJ. Essa compra antecipada teve efeitos positivos no chamado sell-in do mês de Julho de várias empresas do sector, mas a aparente menor venda desses produtos (logo um sell-out menor do que as expectativas) fará com que a stockagem adicional criada vá condicionar, durante algumas semanas, as vendas dessas mesmas empresas.

Por isso e em conclusão, a Jornada Mundial da Juventude foi excelente para a projecção internacional de Lisboa, muito boa para a imagem de Portugal no exterior, mas não foi demasiado positiva para a economia nacional e, por maioria de razão, não o foi para o nosso universo FMCG.