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INFLACÃO MASCARA COMPRESSÃO DO MERCADO?
Há dias o ex-Ministro das Finanças e actual Governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, referia que o poder de compra das famílias, no nosso país, iria recuar 1% este ano...
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Há dias o ex-Ministro das Finanças e actual Governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, referia que o poder de compra das famílias, no nosso país, iria recuar 1% este ano, lembrando que esta redução era justificada pela subida da inflação que está a retirar valor ao salário médio real dos trabalhadores do sector privado.

Contudo, considerando as notícias que vão sendo veiculadas, seja pela via da evolução da inflação, seja pela via das actualizações salariais, não apenas aquele um por cento parece curto, como a perspectiva de redução do poder de compra é comum a todos os trabalhadores, sejam do sector privado, sejam do sector público.  

Como é sabido, foram também há dias anunciados os dados consolidados relativos à inflação para o mês de Maio, que colocam a variação homóloga do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) em 8,0%, o valor mais elevado desde Fevereiro de 1993.

É certo que a variação mensal do IPC desacelerou (1,0% em Maio versus 2,2% em Abril), fazendo crer que nos estaremos a aproximar do pico máximo, embora – como todos sabemos – haja factores exógenos que podem provocar, por via real ou meramente especulativa, novas e repentinas reacelerações.

É também certo que retirando a componente de energia e combustíveis, aquela variação desceria para 5,8%, ainda assim mais 0,5 pontos percentuais do que em Abril - a variação do índice relativo aos produtos energéticos aumentou para 27,3% (26,7% em Abril), o valor mais elevado desde fevereiro de 1985 – mas, como é fácil perceber, a componente energética impacta todos os sectores de actividade e alimenta o crescimento dos respectivos níveis de preços.

Pensando mais especificamente no universo FMCG e olhando um pouco mais em detalhe para a estrutura de construção do IPC, constata-se que a alimentação, as bebidas (alcoólicas e não alcoólicas) e o tabaco correspondem a 25,5% do Índice Harmonizado de Preços ao Consumidor (IHPC), a que se soma 1% mais referente a restauração e hotelaria. Isto, grosso modo, indica que mais de 26% do orçamento médio das famílias portuguesas é dedicado a despesas ligadas aos produtos com que trabalhamos.

Esta percentagem é bastante mais elevada (porque os rendimentos disponíveis são muito inferiores) ao equivalente em países com economias mais ricas e com muito maior capacidade aquisitiva.

Esta percentagem é, apesar disso, relativamente baixa, quando analisamos a distribuição da despesa das muitas famílias com rendimentos muito baixos, onde a parcela dedicada a, por exemplo, lazer, educação, vestuário ou equipamento para o lar, ficam, seguramente bem abaixo das médias consideradas na construção do IHPC.

Lembre-se que, por exemplo, de acordo com os dados da Pordata, em 2018, 54% das famílias portuguesas (2,97 milhões do total de 5,5 milhões) tinham um rendimento disponível anual inferior a 13.500€, ou se quiserem, inferior a 1.000€ por mês.

E a tal análise mais detalhada permite também verificar que o crescimento homólogo de preços na área alimentar já superou os 12%, muito embora esse incremento seja muito assimétrico entre categorias, com um conjunto relativamente restrito de famílias de produto a justificar a parte de leão desse incremento de preços.

Acresce que depois de um período bastante longo de juros com taxas muito baixas, a situação mudou e hoje assistem-se já a significativos aumentos do ‘preço-do-dinheiro’ e as taxas tendem a acelerar nos próximos meses. No nosso país, o impacto é sentido em várias áreas dados os elevados níveis de endividamento de empresas e particulares, sendo – para efeitos de consumo – especialmente significativo o impacto do crescimento dos juros nos créditos à habitação e ao consumo, sendo que um ponto percentual de crescimento da Euribor representa, em média, um aumento de 80€ da prestação mensal da casa de muitas famílias e, consequente, a redução equivalente do rendimento disponível das mesmas.

Finalmente, vale sempre a pensa recordar que nos períodos em que as finanças familiares são mais atacadas, a reacção natural de cada um é a de aumentar o esforço de poupança, antecipando períodos mais complicados que estarão para chegar.

Não é, pois, difícil de compreender que um forte crescimento de preços não acompanhado de uma reposição salarial equivalente terá, em qualquer circunstância, um efeito muito negativo no rendimento disponível. E que a redução do poder de compra tende ainda a ser agravada se aumentarem os encargos com a dívida e o esforço de poupança.

Portugal tem, infelizmente, um histórico recorrente de dificuldades financeiras e de crises económicas. Isto acaba por conferir uma maior resiliência às famílias face a cenários de dificuldades, uma experiência acrescida que advém da gestão de situações similares e uma maior capacidade de antecipar os diferentes momentos das crises.

Por exemplo, relativamente ao impacto sentido durante o período da troika, há um ponto claro em comum: a alavancagem que pode ser gerada pela recuperação e crescimento do turismo e dois pontos em que a situação, hoje, é francamente mais favorável do que em 2011/2013: a situação do mercado de trabalho, próxima do pleno-emprego e a bolsa de poupança feita pelas famílias (mais de 30 mil milhões de euros) durante o período da pandemia.

Mas isso não parece ser suficiente para ultrapassar, sem feridas profundas, a crise que a hiperinflação está a provocar. Pior ainda, quando percebemos que o seu impacto não é localizado, mas sim global. Quando percebemos que os mercados de destino das nossas exportações (e emissores de turismo) estão também a ser fortemente afectados e que muitos dos produtos com mais elevado peso nas nossas importações são exactamente aqueles que estão no olho-do-furacão destes agravamentos de preços.

No mercado nacional, a experiência diz-nos que o universo FMCG enfrenta estas crises com uma evolução ligeiramente desfasada no tempo, da curva que é sentida pelo resto da economia. Chega-se mais tarde à crise, sai-se mais tarde da crise…

O facto da leitura do mercado ser feita a partir dos dados do retalho alimentar, também ajuda esta percepção.

Do mesmo modo que durante a pandemia, o facto das pessoas terem sido ‘empurradas’ para casa e impedidas ou inibidas de fazer consumo fora-de casa, fez crescer fortemente as vendas na distribuição e mesmo no canal mais tradicional (afinal de como em casa, não o faço fora-de-casa e vice-versa, obviamente), também agora vamos observar um fenómeno equivalente, porque o agravamento dos preços convida os consumidores a fazerem mais refeições em casa, a preparar mais refeições em casa mesmo que para consumir na empresa ou na faculdade (e vamos assistir ao regresso, em força, da marmita) e tudo isto empola os dados de vendas.

Mas na crise actual, a inflação introduz um fenómeno novo…

A leitura de dados de mercado é feita, maioritariamente, em valor, desconsiderando ou limitando a visibilidade dos dados em volume. E a inflação gera o engrossar do valor das vendas, mas não mostra tão claramente o que está a acontecer às quantidades vendidas.

Tradicionalmente a leitura das vendas em valor já é enviesada por mecânicas promocionais que têm dificuldade em ser lidas pelas empresas de estudos de mercado (por exemplo, as promoções que afectam o conjunto das compras efectuadas – por exemplo, um desconto de X€ em compras superiores a Y€ - e não são facilmente afectáveis a cada um dos produtos comprados pelo consumidor). Agora, o problema coloca-se na avaliação dos impactos do aumento de preços nas quantidades compradas pelos consumidores. E, pelo menos num primeiro momento, o crescimento das vendas (em valor) tende a criar uma falsa ilusão em relação aos volumes vendidos.

As estruturas de custos das empresas são altamente impactadas pelo crescimento dos custos variáveis, com matérias-primas, embalagens, energia ou transportes, mas são também muito penalizadas se a diminuição dos volumes transaccionados dificultar (e empolar) a diluição dos custos fixos.

Por isso, se em vários outros ângulos esta crise inflacionista está a obrigar a uma reaprendizagem acelerada sobre procurement, logística, negociação ou posicionamento de preços, ela tem implicações mais fundas que podem abanar as bases dos negócios e não podem deixar de ser encaradas com a máxima preocupação… e seriedade.