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FAZ SENTIDO CRIAR UMA ENTIDADE REGULADORA PARA O SECTOR ALIMENTAR?
Há poucos dias e ainda antes do anúncio, por parte do Governo, do pacote anti-inflação, o líder do CDS-PP, Nuno Melo, defendia a adopção do IVA à taxa zero nos produtos essenciais e ...
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Há poucos dias e ainda antes do anúncio, por parte do Governo, do pacote anti-inflação, o líder do CDS-PP, Nuno Melo, defendia a adopção do IVA à taxa zero nos produtos essenciais e a constituição de uma entidade reguladora para o sector alimentar. O também eurodeputado referia que "com a inflação dos bens alimentares a superar os 15%" o primeiro-ministro era desafiado a reduzir o IVA dos produtos essenciais temporariamente à taxa zero”.

E avançava também com a proposta de criação de uma entidade reguladora para o setor agroalimentar “que traga equilíbrio e justiça aos preços dos produtos, até agora esmagados nos mecanismos da relação entre produtores, intermediários e distribuidores”, salientando que “em Portugal praticam-se os preços mais baixos da União Europeia” e que, como tal, “os produtores desesperam para sobreviver e não fechar portas”.

A criação de uma Entidade Reguladora para o Sector Alimentar não é um tema novo na política portuguesa e, por exemplo, o programa eleitoral do Partido Social Democrata (PSD) para as Legislativas’22 (retomando, aliás, uma proposta já apresentada no seu programa de 2019), defendia a criação de “uma Entidade Reguladora do Setor Agroalimentar, por forma a assegurar o respeito por práticas comerciais correctas e um melhor equilíbrio na cadeia de valor, entre a produção e a grande distribuição”.

A criação desta entidade, no entendimento do PSD, “justifica-se pela necessidade de criar um equilíbrio mínimo entre as partes intervenientes neste mercado, atendendo a que estamos perante uma situação de oligopsónio por parte de quem compra e no qual não existe uma base mínima de concorrência. Trata-se, além do mais, de criar condições para o mercado destes produtos evoluir no sentido da generalidade dos outros Estados Membros da U.E. a respeito da harmonização das condições de acesso às prateleiras e de preços.”

O Partido Socialista, no seu programa para as eleições no início do ano, era menos afoito, mas, ainda assim, defendia a promoção de “um maior equilíbrio nas cadeias de valor agrícolas, pecuárias e silvo-industriais, com a concentração da oferta e o reforço da posição dos produtores na cadeia de valor, incentivando as organizações da produção a desempenhar um papel mais efectivo na sustentabilidade das unidades produtivas dos seus associados, promoção das organizações interprofissionais e de organizações dos produtores, estabelecendo regulamentação incentivadora de boas práticas e impeditiva de práticas comerciais desleais”.

Estas propostas estão enquadradas no capítulo dos Programas Eleitorais sobre a Agricultura e, aparentemente, consideram que estes problemas ocorrem exclusivamente no sector alimentar e no relacionamento entre os produtores agrícolas e os restantes elos da cadeia de valor.

Apesar de, por vezes, de forma desfocada e noutras de uma forma que roça um mero desfiar de intenções, o tema da regulação das relações na cadeia de valor é matéria com décadas e remonta ao processo que conduziu à assinatura, em 1997, do primeiro Código de Boas Práticas Comerciais entre a CIP e a APED.

Em Novembro de 2011, logo no início da legislatura com maioria PSD/CDS, os então ministros da Economia e da Agricultura, Álvaro Santos Pereira e Assunção Cristas, legislaram a criação da Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Alimentar (a PARCA), que continua em funcionamento e que tem como membros, para além de diversas entidades públicas, as três confederações agrícolas – CAP, Confagri e CNA -, a CIP (mais a FIPA e a Centromarca) em representação da indústria fornecedora e a APED e CCP, em representação dos diferentes formatos de comércio.

A PARCA foi absolutamente vital para a aprovação do primeiro diploma PIRC ou do primeiro diploma sobre prazos de pagamento, ambos de 2013, e o labor dos então Secretários de Estado José Diogo Albuquerque e Carlos Oliveira, primeiro, e Leonardo Mathias, depois, foram determinantes. Nos governos seguintes, Paulo Ferreira e, mais tarde, João Torres, em conjunto com os seus colegas do lado da Agricultura, Luís Vieira, Nuno Russo e Rui Martinho, foram retomando, de forma mais espaçada, as suas actividades, mas – ainda assim – foi uma plataforma multilateral de grande importância na elaboração do Código de Boas Práticas Comerciais de 2016 ou na mais recente transposição para o direito interno da Directiva comunitária de Unfair Trading Practices.

Em vários momentos deste processo foi discutida, embora nunca com a consistência e a profundidade necessárias, a possibilidade de constituir uma entidade reguladora, que se encarregasse da implementação, monitorização e fiscalização destes diplomas fundamentais ao saudável relacionamento entre fornecedores (sejam da produção primária, seja empresas industriais) e os seus clientes, uma relação marcada por uma tensão permanente e que carece de uma constante ‘arbitragem’ por parte das entidades responsáveis.

As competências de fiscalização destas relações, no âmbito das chamadas Práticas Industriais Restritivas do Comércio, cabem, actualmente, à ASAE, correspondendo à Autoridade da Concorrência assegurar o cumprimento das disposições contidas na Lei da Concorrência, onde se insere o controlo de práticas restritivas como o abuso de posição dominante, o abuso de dependência económica e as práticas concertadas.

É verdade que, em especial, no caso da ASAE, os meios humanos e técnicos são relativamente restritos e, no caso de uma parcela substancial das práticas restritivas, há uma forte dificuldade na efectiva averiguação dos factos e na recolha de provas, especialmente quando não se verifique denúncia por parte dos operadores que se sintam objecto e vítima dessas práticas. Mas isso não desmerece o esforço que esta Autoridade faz para manter um razoável acompanhamento do mercado FMCG.

É também verdade que, nos últimos anos, se verificou um conjunto de actuações protagonizadas pela AdC visando alegadas práticas anti-concorrenciais, levadas a cabo por operadores económicos na área do grande consumo, embora – aparentemente – pudessem existir outras situações que, porventura, deveriam merecer igualmente atenção daquela entidade.

Apesar disso, pareceria aconselhável a existência de uma entidade que desse uma atenção mais focada a este mercado. Não apenas ao sector agro-alimentar, mas abrangendo todo o universo do chamado FMCG, cobrindo relações económicas que superam os 16 mil milhões de euros por ano e onde se incluem, para além de outros, também os sectores das bebidas, da higiene do lar e da higiene pessoal. Um erro cometido vulgarmente passa por julgar que os problemas que existem no sector alimentar são específicos e que diferem e são mais graves do que os que afectam os restantes sectores daquele universo, o que, claramente, não é verdade.

Vale a pena recordar que a legislação nacional nesta matéria – o já referido diploma das PIRC – é transversal e incide sobre todas as transacções e relações comerciais, independentemente de elas ocorrem ou não no sector alimentar ou com produtos alimentares.

Existem alguns modelos noutros países que deveriam merecer a nossa atenção. Por exemplo, em Espanha existe um diploma específico – a Ley de la Cadena Alimentaria – e para o seu controlo foi criada uma entidade específica, a AICA - Agencia de Información y Control Alimentarios. Em França, onde existe, provavelmente, a mais ampla legislação em matéria de relações comerciais, o respectivo controlo cabe a uma entidade transversal, a DGCCRF - Direction Générale de la Concurrence, de la Consommation et de la Répression des Fraudes..

Contudo, julgamos que o modelo provavelmente mais interessante será o britânico. No Reino Unido, existe um quadro legislativo um pouco diferente, que passou pela aprovação - em sede parlamentar - do chamado Groceries Supply Code of Practice (GSCOP), um documento que funciona como Lei (order) para todos os distribuidores com facturação superior a mil milhões de libras (1,14 mil milhões de euros) e que abrange, actualmente, os 27 maiores retalhistas a operar naquele país (o mais recente dos quais foi a Amazon), e como um Código voluntário de Boas Práticas para os restantes, com facturações inferiores àquele limiar.

Para a sua implementação e fiscalização, foi criada a função de Provedor (Ombudsman ou Adjudicator, no inglês), com poderes de arbitragem e investigação, transferindo depois a aplicação de eventuais sanções a entidades como o Office of Fair Trading (OFT), Serious Fraud Office (SFO), Competition and Markets Authority (CMA) ou a Food Standards Agency (FSA). Uma estrutura curta e focada, com meios para recorrer a apoio externo para realização das suas acções de investigação e com a capacidade de estabelecer recomendações e prazos (muito) curtos para a correspondente implementação.

Parece que, se criada com cabeça, tronco e membros, este tipo de modelo poderia ser uma solução intermédia, implementável,  razoável e interessante, com a possibilidade de gerar um efeito de presença, monitorização e reforço da fiscalização do mercado, podendo trabalhar em colaboração com as entidades existentes e com capacidade para influir, positivamente, no melhoramento das práticas existentes e na fluidez, legalidade e ética de toda esta grande e importante área de negócio.