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ESTARÁ A AMAZON A AGIR EM CONTRACICLO?
Surgiu há poucos dias na comunicação social internacional uma notícia que dá conta que a Amazon está a considerar abandonar as suas marcas próprias face ao nível “decepcionante” de vendas...
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Surgiu há poucos dias na comunicação social internacional uma notícia que dá conta que a Amazon está a considerar abandonar as suas marcas próprias face ao nível “decepcionante” de vendas e ao crescente escrutínio regulatório dos dois lados do Atlântico.

Hoje, um pouco por todo lado, multiplicam-se as notícias que dão conta do forte crescimento das marcas próprias em diferentes mercados, largamente em consequência do contexto inflacionista e da redução do poder de compra de largos grupos de consumidores. E Portugal é um dos melhores exemplos desse fenómeno.

Por isso, esta suposta decisão do mais importante operador de comércio digital à escala global parece estranha e surge, aparentemente, em contraciclo.

De acordo com os media, os responsáveis da Amazon pediram às suas equipas que reduzissem o número de referências dos seus produtos de marca própria, que estão à venda nos seus diferentes canais de comercialização.

E ao menor sucesso comercial dos produtos junta-se um outro factor: o crescente escrutínio das autoridades reguladoras nos Estados Unidos e noutros mercados europeus e asiáticos~, por possível conduta anticompetitiva.

Do lado da Amazon, pelo menos nesta altura, é rejeitado que todos os produtos de marca própria sejam descontinuados e afirma-se que “nunca consideramos seriamente fechar o nosso negócio de marca própria e continuamos a investir nesta área, tal como muitos outros concorrentes do retalho fazem desde há décadas e continuam a fazer actualmente”.

Mas as autoridades norte-americanas não veem este assunto da mesma maneira. Em março passado, o comité judicial da Câmara dos Representantes transmitiu ao Departamento de Justiça (DoJ) a investigação que iniciou à Amazon e em que acusou aquela empresa de ter usado dados específicos de outras marcas na plataforma para favorecer as suas próprias marcas.

A retirada dos produtos de marca própria pode servir para limitar possíveis acusações de conduta anticompetitiva nos Estados Unidos, acusações que se somam ao processo já levantado pela Comissão Europeia, e pelo qual a Amazon se teve que comprometer a não utilizar dados não públicos de terceiros vendedores no seu Marketplace, para benefício próprio e das suas próprias marcas, nos próximos cinco anos.

Em 2019, a Amazon dispunha de um total de 150 marcas próprias, em categorias como alimentação, eletrónica ou moda, com vendas que mal atingiram 1% do seu volume de negócios total. Nessa altura, a Amazon aspirava que, em 2022, estas marcas representassem 10% das suas vendas. Contudo, hoje, em algumas categorias, as vendas das suas marcas próprias continuam a representar menos de 1%, com exceção de Moda, onde se estima que as peças 'made in' Amazon cheguem a uma quota interna próxima dos 10%.

Como é que se justifica então que uma empresa e um modelo de negócio considerado como um dos mais poderosos, atractivos e bem geridos a nível global – sendo uma verdadeira referência e um ícone do retalho – não consiga que as suas vendas de marca própria e os seus produtos se convertam num sucesso? Mais ainda quando hoje, no retalho físico (veja-se o caso Português) até nas cadeias menos bem-sucedidas as vendas das marcas de distribuidor ultrapassam sempre os 20%, posicionando-se nos 30-40% nas cadeias mais convencionais e superando os 70% das insígnias de sortido curto?

Não serão certamente os únicos factores que o justificarão, mas parece-me haver três que ajudarão a perceber, em larga medida, as razões deste aparente insucesso.

O primeiro refere-se à diversidade do sortido. No retalho físico, a limitação em área dos lineares, faz com que o aumento, justificado ou insuflado, do espaço disponibilizado para as marcas próprias significa menos espaço disponível para as restantes marcas. Desaparecem marcas dos lineares e mesmo das marcas que mantêm a sua presença, há vários produtos (por vezes aqueles que aportam verdadeiramente inovação) que não chegam ao consumidor ou que vêm essa presença restringida a um universo limitado de lojas. O consumidor é sempre quem, finalmente, decide, mas decide apenas entre os produtos que a insígnia considerou como suficientemente interessantes (para quem?) para estarem presentes na prateleira. Na Amazon, a sua prateleira digital praticamente infinita permite dar ao consumidor a mais ampla escolha, em qualidade, em sortido e em preço.

A segunda refere-se aos diferenciais de preços de venda. Os produtos da Amazon também pela via do preço não conseguiram conquistar a preferência dos consumidores. E o exercício para as insígnias do retalho físico seria simples: coloquem-se nas prateleiras os produtos de marca própria ao mesmo nível de preços dos seus concorrentes de marca de fabricante e então, aí sim, far-se-ia o teste do algodão e perceber-se-ia em detalhe se a preferência dos consumidores resulta efectivamente do produto ou se é uma consequência quase directa da sua evidente vantagem a nível de preço (o qual, nunca se esqueça, é para todos os produtos presentes na loja, sejam de marca própria, sejam de marca de fabricante, da responsabilidade dos retalhistas).

O outro factor é de matriz mais regulatória… se aos operadores da área tecnológica foram impostas, quer nos Estados Unidos, quer na Europa, regras estritas (acompanhadas de pesadas multas, resultantes de comportamentos recentes) para que os mesmos não possam beneficiar dos dados não públicos dos terceiros vendedores, já na área do retalho físico e, em especial, do retalho alimentar essas regras ou não existem, ou se existem nunca foram devidamente implementadas e fiscalizadas. Tal como na Amazon, os seus fornecedores (ou terceiros vendedores) são simultaneamente concorrentes dos seus produtos de marca própria e como tal as regras deveriam assumir esse duplo papel e criar obrigações que permitam uma concorrência mais leal e equilibrada entre todos os produtos presentes no mercado.

Do nosso lado, defendemos de há muito o estabelecimento de mecanismos regulatórios que impeçam a discriminação não objectiva entre produtos e marcas e embora reconhecendo que há um longo caminho a percorrer até ao estabelecimento de um conjunto de regras equilibradas e eficazes, não deixa de ser interessante verificar que a actuação efectiva das autoridades – como aconteceu com a Amazon e com gigantes tecnológicos como o Facebook ou a Google -  conduz a aparentes surpresas e a comportamentos que, numa análise simplista, parecem ser contracíclicos.