ALMA DE MARCA
Ideias e Reflexões #paramarcasquemarcam
Opinião
DO TELETRABALHO ‘EMPURRADO’ ÀS NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Há quinze meses atrás, a 30 de Março de 2020, publiquei no meu Linkedin pessoal um texto que intitulei "O coronavírus e o 'despertar' do teletrabalho"...
TAGS

Há quinze meses atrás, a 30 de Março de 2020, publiquei no meu Linkedin pessoal um texto que intitulei "O coronavírus e o 'despertar' do teletrabalho", no qual reflectia sobre aqueles primeiros dias de pandemia e da, então, descoberta - pelo menos para muitos - de um mundo senão novo, por certo diferente, para todos aqueles que as profissões permitiam não ter que ocupar, fisicamente, os seus postos de trabalho nas instalações das respectivas empresas...

Hoje, por força de uma mensagem que recebi, recordei o que então escrevi e que 'rezava' assim: 

"Confesso que sou um lobo isolado e não um lobo de alcateia ou líder da alcateia. Sempre fui especialista a liderar ‘equipas-de-um’ e confesso uma razoável inabilidade para as formas mais comuns de trabalho em equipa e alguma dificuldade, pelo menos numa fase inicial, de lidar com novos colaboradores e de eles lidarem comigo.

Confesso algum desajeitamento social e, apesar da extensa rede de contactos que possuo (e que prezo), tenho muito pouca paciência e pouca apetência para algumas das obrigações sociais que as minhas funções por vezes implicam. Com as pessoas certas (e pelos temas certos) gosto da rotina dos almoços de trabalho. Odeio os compromissos de fim-de-tarde ou os jantares de negócios e, mais ainda, os que apenas são feitos por obrigação profissional.

Confesso que sou um ‘viciado’ no online e sou dos que têm pânico de morte de estar desligado do mundo durante uma ou duas horas e o mundo ter entretanto mudado, sem eu dar conta. Uma das primeiras coisas que faço quando me levanto e das últimas que faço antes de me deitar é ver se há novidades, seja lá o que isso seja. Viajo bastante e sou um fervoroso adepto do ‘travel light’, mas como ouço a minha outra metade dizer: “podes esquecer-te das cuecas, mas nunca te esqueces do computador”. E desconverso sempre que me fazem a pergunta: “eras capaz de passar uma semana num sítio onde não tivesses rede?”.

Confesso ainda uma fortíssima indisciplina no que se refere aos horários de trabalho e à forma de trabalhar. Sou de um rigor germânico no que se refere ao cumprimento de objectivos e de prazos, mas gosto pouco que me perguntem quando e como é que os cumpro. Passar muito tempo sozinho, não ter filhos pequenos, ter uma mulher (apesar de tudo) compreensiva, ajuda-me a viver numa aparente anarquia organizada, mas que é a minha e a fazer sucessivas omeletes, com ovos e (muitas vezes) sem ovos, as minhas omeletes e as omeletes de outros!

Vem todo este 'confessionário' a propósito desta recente descoberta do mundo ‘fantástico’ do teletrabalho.

Se para mim, como costumo dizer, deixem-me com o meu computador e o meu telemóvel e eu trabalho basicamente da mesma forma em qualquer local ou espaço, para outros, há as dificuldades próprias de trabalhar em equipa, mas à distância. As dificuldades de coordenar tempo e espaço em lares onde convivem várias pessoas com diferentes focos de atenção. As dificuldades de respeitar rotinas e horários. As dificuldades de distribuir tempo entre família e trabalho. As dificuldades de trabalhar em casas em que, de repente, o número de divisões, de computadores e de outros aspectos aparentemente básicos, passou a ser curto face a uma utilização muito mais ampla que a habitual.

Da mesma forma que nem todos nascemos para ocupar esta ou aquela função, assumir esta ou aquela responsabilidade, realizar esta ou aquela tarefa, também nem todos nasceram para gostar de trabalhar à distância, para serem os reis das tecnologias das reuniões virtuais ou para cumprirem rotinas sem terem por próximo quem os ajude a cumpri-las.

Mas, na verdade, se tenho contactado com muitas pessoas que me confessam estar a ter dificuldades, em especial quando têm que dar atenção simultânea a crianças irrequietas ou quando não possuem a infraestrutura necessária devidamente implementada, vários outros estão a descobrir neste modelo novas virtualidades: a da não realização de viagens de dois dias ou de sair de casa ao nascer da aurora e regressar já noite escura, para realizar reuniões (muitas vezes da treta) de uma ou duas horas. Ou de, não saindo, não perderem diariamente longuíssimos minutos no trânsito, o que torna os seus dias de trabalho mais curtos (ou mais longos). E há quem me confesse nunca ter trabalhado tanto como nestas últimas semanas. E que coisas tão simples como a realização de chamadas telefónicas, deixaram de ficar condicionadas por aquele velho prurido do “não lhe vou ligar porque já saiu do escritório” ou do “desculpe ligar a esta hora, não sei se o apanho ainda a trabalhar”.

Tenho poucas dúvidas, que esta crise – muito especialmente se for bastante prolongada – vai ter muitas (e novas) implicações na organização do trabalho, do ensino, da prática luso-portuguesa do reunismo (que consiste em fazer reuniões por tudo, por nada e inclusivamente para se preparar as reuniões) e de vários outros aspectos que vão interferir na nossa forma de estar, mas também na nossa forma de ser.

Mas há também algumas coisas de índole prática e infraestrutural que vão ter que mudar. Por exemplo, as redes digitais de nossas casas vão-se tornar claramente insuficientes para o volume de tráfego que aumentará exponencialmente (quem é que por estes dias ainda não se queixou de velocidade da net ou das rodinhas no ecrã em tudo o que seja streaming). Ou os equipamentos que normalmente temos em casa que serão cada vez mais curtos para as exigências de velocidade e de instalação de software que o teletrabalho exige. Ou, a velha questão: quem pagará essas instalações… o próprio ou a entidade para quem trabalha.

Também se abrirão novas oportunidades. No comércio online, no ensino à distância ou até na comunicação social. Com menos deslocações, menos transportes públicos e menos utilização de cafés e restaurantes, menos passagens em áreas comerciais, menos motivos para a socialização, o mundo vai mudar… e nem sempre para melhor.

Como dizia um célebre lateral do meu F.C.Porto, prognósticos só no fim do jogo e apenas o tempo se encarregará de nos explicar se estas mudanças são apenas força das circunstâncias (e durarão enquanto estas circunstâncias durarem) ou se envolvem uma alteração de paradigma. Pelo meu lado, aposto em algo que estava já para a acontecer e que o fenómeno do Covid-19 apenas veio acelerar: a desmaterialização, que tem, no entanto, de ser feita com cuidado e ponderação, sob pena de penalizar excessivamente os nossos valores sociais e civilizacionais.

Porque apesar do que atrás referi – e tenho consciência absoluta do que digo – somos menos humanos, quando nos escondemos atrás dos ecrans ou fechados entre as paredes das nossas casas (a não ser, como agora, quando isso é totalmente imperativo, para nos protegermos dos outros e para protegermos os outros)".

Ao fim de todos estes meses a história continua ainda a escrever-se e, como tenho inúmeras vezes referido, está no centro de uma das áreas de reflexão mais relevantes nos tempos que correm, a do futuro do modus operandi das organizações.

Algumas dúvidas daquela altura transformaram-se hoje em certezas... como, por exemplo, a de que, para muitas funções e organizações, o regresso a um trabalho integralmente presencial não irá ocorrer.

Mas essas certezas geram novas dúvidas: o trabalho em equipa manterá a sua eficiência? a identidade e valores das organizações resistirão bem a uma menor partilha de tempo e espaço? o perfil dos colaboradores deverá ou não ser alterado e de que forma isso afectará os novos processos de recrutamento? de que forma os sistemas remuneratórios conviverão, para muitas funções, com uma lógica de 'entrega' em detrimento de uma lógica de 'tempo'? ultrapassadas as restrições sanitárias, os modelos híbridos - presencial/à distância - de trabalho deverão apostar ou na concentração de todos os colaboradores nas instalações da empresa nos períodos de trabalho presencial? como serão redesenhados os escritórios do futuro? e que impacto isso terá nas cidades, no urbanismo e na mobilidade?

Estas perguntas são apenas uma pequena amostra daquelas que todas as organizações de alguma dimensão e relevância estarão a fazer nesta altura e, na verdade, cada uma delas estará a olhar pelo canto do olho para o que os seus pares pretenderão fazer, pois em todos este exercício há uma grande dose de experimentalismo e todos nos sentimos, no fundo, cobaias deste enorme laborátório social que a pandemia criou.

Pedro Pimentel

2020.07.02