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DE REGRESSO À DITADURA DO PREÇO?
Quando realizamos uma compra, o preço é a única variável que levamos em linha de conta?
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DE REGRESSO À DITADURA DO PREÇO?

Quando realizamos uma compra, o preço é a única variável que levamos em linha de conta? Será certamente um argumento de peso, mas, felizmente, para uma elevada parcela dos consumidores e das famílias portugueses não é exclusivamente assim.

Qualidade, confiança, conveniência, disponibilidade, sustentabilidade, inovação, adaptação às preferências pessoais, empatia com a marca, emoção ou experiência de compra não serão os únicos, mas são, certamente, outros dos principais argumentos que sustentam as nossas decisões de compra.

Em Portugal, o rendimento disponível das famílias, por comparação com os nossos países vizinhos, é muito baixo. O endividamento de curto (crédito ao consumo) e de longo prazo (crédito à habitação) é elevado e representa para muitos uma pesada taxa de esforço. A promodependência é um facto e a profundidade promocional nacional não tem paralelo na quase totalidade dos países da Europa Ocidental. A sensibilidade aos preços é muito elevada, como elevada é também a elasticidade-preço de uma parcela substancial de produtos no universo do grande consumo.

É verdade que estamos e vamos enfrentar uma vaga inflacionista, que se propaga à escala global, e os expectáveis aumentos de preços afectarão, ainda mais, os rendimentos disponíveis da generalidade das famílias. E mais ainda os das famílias com menos recursos económicos.

Por isso, a referida sensibilidade será ainda mais exponenciada nos próximos meses. Os limites daquela elasticidade fortemente testados e, mesmo considerando o esgotamento que se sente de há muito relativamente ao modelo promocional desenvolvido por vários operadores, quase que já não nos surpreendemos com comunicações formais que anunciam descontos impensáveis para determinadas famílias de produtos.

Num mercado em que a marca própria dos distribuidores já atinge patamares bastante elevados – quase 37 em cada 100 euros de compras dos portugueses, mais de 52% das compras totais realizadas, se medidas em volume – as dificuldades económicas parecem funcionar como um acelerador da respectiva presença no mercado.

No entanto, uma análise um pouco mais funda, mostra-nos que momentos de fortíssimas dificuldades económicas, como vivemos na última década, não foram acompanhados do expectável incremento exponencial na quota da vulgarmente chamada ‘marca branca’, em larga medida como resultado de agressivas estratégias promocionais de muitas marcas de fabricante.

Como, mais recentemente, assistimos a crescimentos da marca própria em anos de maior desafogo económico e onde, aparentemente, o impulso para a sua compra surge por outras vias. Caso, obviamente, da melhoria do perfil de qualidade, da diversidade, posicionamento e apresentação dos seus produtos, da concorrência directa que se estabelece entre as marcas próprias dos diferentes retalhistas, obrigando cada um deles a responder aos avanços dos seus competidores mais directos ou do deslizamento já sensível da quota de mercado (e consequente da opção de compra de um número relevante de consumidores) dos retalhistas de sortido mais longo, para as insígnias associadas a modelos de discount, com um sortido muito mais curto e onde a parcela de vendas correspondente às ‘marcas brancas’ é incomparavelmente mais elevada.

Quem está mergulhado no universo do grande consumo sabe bem o que significa a luta desigual que as marcas de fabricante enfrentam de há muito e de como essa luta assume proporções hercúleas no cenário actual. O consumidor, como é normal, faz as suas opções em função dos produtos que são colocados à sua disposição e em face dos preços com que esses produtos lhe são apresentados.

Como escrevi recentemente, o cenário de cavalgada dos custos de produção que os fabricantes estão a enfrentar obriga a uma enorme sensibilidade em relação à forma como eventuais aumentos de preços dos seus produtos serão percebidos pelos seus clientes (os retalhistas) e pelos seus consumidores, sendo que a perda de poder de compra que a própria inflação tenderá a gerar, a elasticidade-preço, a exposição concorrencial e a evolução do diferencial de preços entre as marcas de fabricante e as marcas ‘brancas’ serão, seguramente, incógnitas da equação que todos tentarão decifrar.

Mas nestas alturas e até por força de uma corrente que se propaga e que repete incessantemente a ideia de que a única opção ‘inteligente’ é a da compra do produto mais barato (havendo quase uma pressão social nesse mesmo sentido), assistimos à prescrição despudorada dos produtos de marca própria.

Fará, pois, sentido elucidar ou recordar à comunicação social, a múltiplas organizações e ao consumidor em geral como se desenvolve a cadeia de valor no grande consumo e como, no limite, se estabelece o diferencial de preço entre marca ‘branca’ e as marcas originais.

Não está em causa a qualidade básica dos produtos de marca própria, o forte trabalho de alargamento das suas gamas, de design das suas embalagens e, inclusive, de construção de marca, quando verificamos que em algumas gamas os retalhistas optaram por afastar as suas marcas-insígnia e criar marcas específicas, até como forma de tentar convencer o consumidor de que não são ‘marcas-de-supermercado’. E a esse nível, há mesmo que reconhecer o forte trabalho criativo e comunicacional desenvolvido por diversos retalhistas. Como se pode reconhecer o mesmo ao nível da sustentabilidade, da conveniência ou da adaptação às preferências de um consumidor, que consegue conhecer profundamente a partir dos comportamentos de compra nas suas lojas.

Há, apesar disso, um amplo conjunto de factores que permitem distinguir umas marcas de outras, factores que há uns anos elenquei num texto de opinião que intitulei "Marcas Brancas e Não-Brancas: descubra as diferenças”. Contudo, as questões que geram a parte de leão da luta desigual, que atrás referi, estão especialmente associadas às condições de acesso aos lineares e à formação dos preços com que os diferentes produtos – marcas ‘brancas’ e marcas de fabricante – são colocados à disposição do consumidor.   

Hoje, por questões operacionais e de maximização da rentabilidade do retalhista, a redução de sortidos e a gestão selectiva dos lineares é uma realidade crescente e preocupante. O consumidor por vezes esquece-se que quando entra numa loja, escolhe de entre os produtos que, previamente, o retalhista escolheu. As prateleiras dos supermercados não são, obviamente, infinitas e o número de artigos colocados à venda em cada categoria é cada vez mais restrito.

Para além das dificuldades que isso introduz na apresentação e rentabilização do investimento em inovação e desenvolvimento (apenas dois em cada dez novos produtos conseguem resistir mais do que dois anos nas prateleiras), a compressão de sortidos faz com que em muitas lojas e em especial nas de áreas mais reduzidas e nos espaços comerciais das cadeias de discount, a oferta para muitas famílias de produtos se limite à marca ‘branca’ ou, quando muito à marca ‘branca’ e à marca líder.

Essa opção coloca em enorme vantagem as marcas do distribuidor e retira, por si só, o acesso de milhões e milhões de consumidores a muitos produtos de marca de fabricante, pois como é fácil perceber, o consumidor acaba por optar de entre os produtos que estão disponíveis nas lojas que visita e muito raros serão os que se deslocarão propositadamente a uma outra loja, apenas para comprarem um ou outro produto que prefeririam. É a conveniência a sobrepor-se à diversidade e à liberdade de escolha.

Por outro lado, não se deve esquecer que as marcas do fabricante são vendidas ao distribuidor, sendo que é este que tem a exclusiva responsabilidade de marcar o respectivo preço de venda ao público, responsabilidade extensiva, obviamente, aos seus produtos de marca própria. Assim, é o retalhista que define, em simultâneo, o preço de venda das suas próprias marcas e das marcas de fabricante, suas concorrentes…

Não se deve esquecer que as marcas de fabricante estão sujeitas a todo um conjunto de exigências financeiras e promocionais para acesso e permanência na prateleira, enquanto as marcas do distribuidor têm o espaço que o dono da prateleira entende e não necessitam de fazer qualquer investimento para aí serem colocadas.

Não se deve esquecer que o fabricante tem que informar antecipadamente o distribuidor dos planos que tem definidos para as suas marcas: novos lançamentos, mudanças de embalagem, estratégias promocionais… e que o distribuidor constrói os planos para as suas próprias marcas sendo antecipadamente conhecedor de tudo o que os seus concorrentes planeiam fazer.

Não se deve esquecer, finalmente, que as marcas de fabricante são normalmente mais caras porque lhe são aplicadas, em regra, margens de comercialização muito mais elevadas do que às marcas da distribuição. É a margem ampla obtida com a venda das marcas de fabricante que gera a rentabilidade que compensa a margem menor conseguida com as marcas próprias, num interminável modelo de subsidiação cruzada.

Mais esclarecido?... Assim espero. Percebendo melhor estas diferenças, da próxima vez que for a um supermercado provavelmente entenderá melhor o sortido que encontra nas prateleiras e os diferenciais de preço, quantas vezes absurdos, entre as marcas ‘brancas’ e as suas marcas preferidas.

E também seria bom que organizações idóneas percebessem igualmente que quando, sem rebuços, insistem na preferência que os consumidores deverão dar às marcas brancas, mais não fazem do que ignorar e perpetuar este jogo desigual, jogado num terreno permanentemente inclinado e que tende a criar desequilíbrios entre os vários elos que compõem a cadeia de abastecimento.