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Da Gestão do Será Que? ao Just in Case.…
Nunca, nas últimas décadas, os diferentes factores se conjugaram de uma forma tão ‘alinhada’ na construção duma ‘tempestade perfeita’.
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Nunca, nas últimas décadas a cadeia de abastecimento esteve tão pressionada como estamos a assistir nos últimos meses. Nunca, nas últimas décadas, os diferentes factores se conjugaram de uma forma tão ‘alinhada’ na construção duma ‘tempestade perfeita’. Nunca, como agora, a globalização, com os contornos que foi adquirindo nas últimas décadas, foi tão dramaticamente colocada à prova.

A dificuldade estará em perceber se este era um desastre anunciado ou se estaremos perante um novo (a)normal.

Antes de começar uma confissão prévia.

Este texto é, em larga medida, um plágio. Mas também um elogio. Esta semana tivemos o privilégio de contar com a presença, numa nossa reunião interna, do Presidente da APLOG, Raúl Magalhães, e do Country Manager da LPR, Flávio Guerreiro, que me deram a mim e a todos os que tiveram a oportunidade de assistir, duas excelentes ‘lições’ sobre o estado-da-arte actual ao nível da gestão da cadeia de abastecimento e sobre as principais precauções e pistas que as nossas empresas (e, diria, quaisquer empresas) devem considerar neste cenário de profunda incerteza. E o plágio começa logo no título deste texto.

Na verdade, muito se tem falado de crise de abastecimento e sobre problemas da operação logística, especialmente desde que começou o conflito na Ucrânia. Mas, em boa verdade, os problemas agora ‘destapados’ estavam já maioritariamente identificados e os seus efeitos vinham sendo sentidos, em crescendo, desde o início do segundo semestre de 2021 e, mais fortemente, no último trimestre do ano passado.

Em Dezembro, no seio da Centromarca, colocamos a disrupção da cadeia de abastecimento e o consequente efeito inflacionista como ‘O TEMA’ para 2022, e em inúmeras ocasiões, bem antes dos primeiros disparos entre Rússia e Ucrânia demos, interna e externamente, nota disso mesmo.

Em Dezembro, escrevia, num texto que intitulei "2002: O Ano dos Faquires", que depois de um 2020 hipocondríaco e de um 2021 bipolar, antecipava um 2022 em que – quais faquires - caminharíamos sobre brasas. E que neste cenário de incerteza teríamos que ser, em cada uma das nossas casas, muito criteriosos e cuidadosos na escolha do ‘calçado’ para enfrentar essa difícil caminhada.

Nesse artigo, identificava significativos aumentos de custos a nível de matérias-primas e de materiais de embalagem, a nível de logística e transportes, os sensíveis aumentos dos custos laborais, aumentos estes que conjugados com incrementos súbitos dos níveis de encomenda em muitos produtos e em muitos mercados, estavam a gerar uma forte pressão sobre toda a cadeia de abastecimento.

Mas se isso era o que se observava à tona da água, por baixo, mais no fundo, enxergavam-se as 'causas das coisas', com a conjugação de outros factores que já então condicionavam toda a supply chain e o mercado. Com destaque para a sucessão de eventos climáticos extremos, a reversão e a interrupção de fluxos migratórios, a acrescida complexidade dos movimentos transfronteiriços de pessoas e bens, os estrangulamentos nas operações portuárias e nos transportes aéreos, marítimos e rodoviários, as dificuldades na contratação de mão-de-obra e o crescimento da chamada fiscalidade ambiental e regulatória, adicionando-se, no universo FMCG, a pressão introduzida pelo online, pelas meal deliveries e pelo q-commerce.

E não esquecia que a complexidade e incerteza dos cenários era ainda agravada pela escalada de conflitos regionais (Bielorússia/Polónia, Rússia/Ucrânia, Paquistão/Índia, Colômbia/Venezuela ou Argélia/Marrocos) e pelos seus múltiplos efeitos geopolíticos e económicos.

Um trimestre depois, a realidade suplantou a imaginação e o conflito Rússia/Ucrânia assumiu todo o protagonismo, amplificando e acelerando fortemente – como temos visto nas últimas semanas - aquele conjunto de efeitos.

E isso fez-nos baixar a atenção relativamente a outras situações de tensão fronteiriça, incluindo essa enorme bomba-relógio que temos às portas de Portugal, ligado com as sucessivas escaramuças entre marroquinos e argelinos, uma tensão que surge em torno de direitos sobre o Sahara Ocidental e tendo como pano de fundo a crescente aproximação de Marrocos a Israel.  

Não é possível excluir uma escalada para um conflito armado de larga escala, a curta distância do território nacional, abrindo a porta a uma radicalização islâmica nos dois países, colocando em causa interesses nacionais ali presentes, especialmente em Marrocos e podendo tornar a situação energética na Península Ibérica ainda mais complicada, com limitação de acesso ao petróleo e, especialmente, ao gás natural proveniente da Argélia.

No entanto, basta ler as capas dos jornais do último mês para perceber que a inflação, os problemas de abastecimento e a conflitualidade social se agravaram e se tenderão a agravar ainda mais nos próximos meses. Sem dúvida pelos efeitos do conflito no Leste Europeu, mas também porque esses efeitos exponenciam as dificuldades que já se estavam a sentir, criando, mais do que uma realidade nova, uma realidade aumentada.

Na apresentação que atrás referi, Raúl Magalhães, lembrava que mesmo antes da pandemia, já as dificuldades se sentiam em consequência de fenómenos comerciais de amplitude global (por exemplo, os conflitos gerados no reinado Trump), as novas exigências em matéria ambiental e, acima de tudo, pelo esticamento – até ao limite – de modelo económico assente em custos baixos, desaparição de stocks de segurança e a redução de exigência a nível de segurança e risco.

A pandemia despejou, em cima destas chamas, a assimetria da velocidade de recuperação da actividade económica e do consumo em diferentes zonas do globo e a constatação de que, por exemplo, a Europa mostra um elevadíssimo nível de dependência externa (e longínqua) em muitas matérias-primas e componentes absolutamente críticos para o funcionamento da sua economia. Para além, claro, de episódios como os do Brexit ou do Suez, que introduziram layers adicionais de dificuldade e estrangulamento.

Tudo isto conduziu a uma forte pressão energética, a rupturas de fornecimento que colocaram sectores internos em paralisia ou semi-paralisia e à emergência do fenómeno inflacionista, que mesmo antes do conflito ucraniano, apontava já para que 2022 apresentasse as mais elevadas taxas desde a década de 80, embora, no início do ano, se pensasse ainda em crescimentos apenas a um dígito.

A emergência da guerra no Leste e os seus efeitos imediatos e os consequentes efeitos especulativos, para além de uma pandemia que ainda não está – a nível global – totalmente ultrapassada, está a produzir um fenómeno de redução do que poderíamos designar como grau de globalização, considerando como padrão o que se verificava em 2019, com redução o comércio internacional, transacções mais concentradas do ponto de vista geográfico e uma menor eficiência logística.

Hoje, como referia Flávio Guerreiro, estamos confrontados com escassez de recursos (por exemplo, motoristas), com prazos de entrega mais longos, com rotas a necessitarem de ser reoptimizadas, com restrições que implicam solavancos produtivos e fluxos mais intermitentes. E estamos também, na outra ponta da cadeia, a enfrentar a multiplicação da capilaridade, empurrada pelo online, para fazer face a um consumidor que ‘quer tudo’: preço, disponibilidade e velocidade.

Tudo isto aponta a uma reaprendizagem (para muitos uma aprendizagem efectivamente nova) face a fenómenos como os da hiperinflação que não nos assolavam há mais de trinta ano, a uma avaliação contínua de riscos, ao reequacionamento do sourcing, produção e de toda a supply chain, com nível de serviço, proximidade e segurança a terem que ser mais fortementeconsiderados na decisão, mesmo que em prejuízo do custo.

Tudo isto aponta, igualmente, à necessidade de reforço da resiliência da supply chain, simultaneamente mais ágil e flexível, mais sustentável e verde, com um incremento do abastecimento de proximidade, uma maior visibilidade e, como tal, a necessitar de investir, ainda mais, em gestão de informação, automação e capacidade preditiva

Como o Presidente da APLOG - certeiramente – rematava: agora, mais do que o tempo do Just in Time estamos no momento do Just in Case.