ALMA DE MARCA
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Covid19
COVID-19 E A VELHA HISTÓRIA DO JUSTO E DO PECADOR...
Os tempos que vivemos são de pessimismo e ansiedade. São tempos de paralisia, por um lado, de actividade frenética, por outro. São, verdadeiramente, tempos de excepção.
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Como de excepção será este texto, onde falarei menos de marcas e de mercado, como é timbre desta coluna, e mais de Portugal e dos Portugueses. Onde falarei menos em modo institucional, como costumo fazer, e mais na primeira pessoa, com o coração e com a pele.

Quando escrevo esta 'crónica' foi decretado há apenas dois dias o Estado de Emergência em Portugal. E acabam de ser conhecidos os termos básicos em que vigorará. O momento que vivemos, chamemos-lhes de Alerta, de Calamidade ou de Emergência, irá ter consequências muito graves no Mundo, consequências muito graves em Portugal, consequências profundas nas nossas vidas. Delas haverá certamente espaço nos próximos tempos, para proceder à sua avaliação e antecipar impactos, que, não tenho dúvidas, perdurarão muito para lá desta emergência sanitária que está a varrer o nosso planeta.

Mas falemos de Portugal. Falemos de Março de 2020. Porque se o nosso mundo está a mudar, há muitos de nós que ainda não absorveram nem perceberam a mudança que já está aí. Porque num país num momento de excepção, há quem queira não fugir das suas regras e das suas rotina.

Agora, como em todos os restantes dias do ano, há sempre quem esteja muito mais preocupado com os seus direitos de que com os seus deveres. Quem queira, mesmo numa crise desta magnitude, que não lhe falte nada… estando-se mais ou menos a borrifar que aos outros lhes possa vir a faltar tudo.

Há quem compre como se não houvesse amanhã, pouco se importando se o consumidor seguinte encontrará ou não aquilo de que precisa. Há quem se ache de férias, quando está em casa em teletrabalho. Há quem considere que se está em teletrabalho não deveria ter que cuidar dos filhos (ou o inverso), achando-se com direito a uma remuneração para cuidar dos seus ou que, então, não deveria ser obrigado a trabalhar porque tem os filhos em casa. Há quem, vendo as suas entidades patronais a fechar, obrigadas pelas circunstâncias ou pela ausência de clientes, não tenha pruridos em recusar gozar nesta fase as férias a que tem direito, exigindo provavelmente gozá-las quando as suas empresas reabrirem, não abdicando de o fazer apenas quando lhes dá mais jeito.

Ao mesmo tempo, vemos um coro afinando exigindo que todos deveríamos estar em casa e a quase insultar uma qualquer pessoa que esteja na rua, mas queremos chegar a uma farmácia, a um supermercado ou a um outro serviço de que precisamos e termos lá as pessoas para nos atender, as pessoas para nos servir. Esquecendo todos aqueles que, arriscando a sua saúde e a dos seus, todos os dias saem de casa para que os que, aborrecidamente mas comodamente, estão confinados aos seus lares, continuem a usufruir das mais diferentes comodidades. Esquecendo, por exemplo, que os produtos dos supermercados ou os medicamentos das farmácias não têm vida própria e não chegam às respectivas prateleiras sozinhos.

Berramos também que todos deveriam ser proibidos de por o nariz fora da porta, quando temos casa e geralmente um salário ao fim-do-mês que o patrão ou o Estado não deixará de pagar, esquecendo aqueles que não têm um salário ao fim do mês, aqueles que não ganham senão aquilo que fazem ou aquilo que vendem, aqueles cujos empregadores, porque não têm a árvore das patacas no quintal, não facturando, dificilmente poderão cumprir os seus compromissos com os colaboradores.

É por isso que a declaração do Estado de Emergência, se bem que necessária, é uma facada na nossa liberdade enquanto indivíduos. Facada porque ao comportamento irrepreensível de uns se opõe o descuido e o desleixo de outros. Facada porque se inverte o princípio básico de penalizar quem não cumpre, passando a inibir e limitar a liberdade de quem cumpre. Facada porque, fechados em casa, protegemo-nos mas não protegemos a nossa economia (porque nem todos os trabalhos podem ser desenvolvidos à distância). Facada porque continuamos a não perceber (nem a educar as pessoas) para o princípio da ‘máxima liberdade, máxima responsabilidade’ ou de que a ‘nossa liberdade acaba, onde começa a dos outros’. Facada, porque uma das coisas que, com ou sem coronavírus, não há meio de conseguir sentido e actualidade ao velho provérbio de que paga sempre o justo pelo pecador. 

Originalmente publicado no semanário Vida Económica em 2020.03.27