ALMA DE MARCA
Ideias e Reflexões #paramarcasquemarcam
Opinião
BIGGER IS (ALWAYS) BETTER?
O crescimento da concentração do mercado retalhista de produtos alimentares é uma realidade facilmente observada e reconhecida
TAGS

Nas últimas semanas, muitas têm sido as notícias que nos chegam de operações de aquisição no sector do retalho alimentar.

Depois de conhecida, no início de Agosto a aquisição do Minipreço e da restante operação do Grupo Dia, em Portugal, soube-se – em pouco mais de um mês -, que, por exemplo em Espanha, o Carrefour adquiriu 47 lojas Supercor ao El Corte Inglés.

Que, em França, a Lidl está em via de adquirir a Monoprix, uma importante insígnia de proximidade com mais de 600 lojas e detida pelo grupo Casino (em fortes dificuldades, actualmente).

Que, na Bélgica, a Coldruyt acaba de adquirir as quase 60 lojas das insígnias Match e Smatch aos seus rivais da Louis Delhaize.

Ou que, no Luxemburgo, a E.Leclerc acabou de comprar 2 hipermercados à Cora e quase 30 lojas Match e Smatch da belga Delhaize.

E mais exemplos poderiam ser dados nestes e noutros mercados europeus.

As convulsões que os mercados têm vindo a sofrer, em especial depois do início da pandemia, no primeiro trimestre de 2020, farão – certamente – os operadores ser cautelosos em relação aos investimentos a realizar nesta fase. Mas, por outro lado, as dificuldades sentidas por alguns operadores e os problemas que outros têm para acompanhar os ritmos de crescimento dos que melhor conseguiram perceber as necessidades e prioridades dos consumidores, provocam estas sucessivas operações.

O crescimento é, quase sempre, a melhor ferramenta para enfrentar as vagas alterosas da crise financeira, da alteração dos padrões de consumo e da inflação. A penetração nos diferentes segmentos do mercado, a necessidade de uma omnicanalidade mais efectiva, a maior presença geográfica, o custo imobiliário muito inflacionado para a implantação em novas localizações, são alguns dos argumentos que levam diferentes insígnias a optar pela via das aquisições, em detrimento do mais consistente, mas seguramente mais lento, caminho do crescimento orgânico.

Claro que as aquisições levantam questões complexas, a nível organizacional, logístico, operacional e mesmo de definição de segmentos-alvo, que ultrapassam amplamente o valor financeiro que é investido na aquisição de um concorrente.

Retira-se um competidor de jogo, incorpora-se quota de mercado, mas nestes casos nem sempre dois mais dois são quatro. Quando a operação é harmónica, eficiente e adoptada pelo consumidor, as sinergias e a injecção de energia podem gerar um resultado maior que quatro. Mas quando há um desfasamento de organizações e de culturas, quando as alterações tardam a produzir efeitos, quando as equipas não ‘casam’ o resultado pode, muito facilmente, resultar numa soma negativa e bem abaixo da aritmética soma das partes.

Mas se esta tentativa de ganho de dimensão e de consolidação de mercado pode ter méritos associados, a verdade é que pode também trazer dissabores ao mercado, seja a montante, para a cadeia de abastecimento, seja a jusante, para o consumidor, como resultado de uma menor concorrência, de um poder de compra e de mercado acrescido, da capacidade de extrair deslealmente valor de fornecedores e de exercer uma pressão excessiva sobre rivais menos poderosos, pressão que tende a desaparecer e a penalizar o consumidor, assim que o mercado deixa de apresentar uma competição efectiva, que obriga a eficiência na operação, na negociação ou na colocação do produto no mercado.

Assim, dando especial atenção aos efeitos ao longo da cadeia de valor, vale a pena recordar que os retalhistas – e mais ainda os retalhistas de maior dimensão – exercem uma função de portageiros do mercado e essa função está na origem do chamado buyer power que os distribuidores exercem na sua relação com os fornecedores e esse poder aumentou substancialmente na última década. Neste período e para além do óbvio crescimento do comércio electrónico e da crescente influência das plataformas digitais para um conjunto de categorias de produtos, o retalho tradicional testemunhou uma concentração significativa e uma maior integração vertical em muitos mercados europeus.

Isso restringe materialmente a capacidade dos detentores de marcas de aceder aos mercados e de encontrar o seu espaço nos lineares e restringe a sua presença nas lojas, penalizando consumidores e empresas fornecedoras.

O crescimento da concentração do mercado retalhista de produtos alimentares é uma realidade facilmente observada e reconhecida e as grandes insígnias, por exemplo, representam quase 90% de todas as vendas retalhistas de alimentação e bebidas na União Europeia.

A concentração e o referido buyer power são também reforçados pela internacionalização do retalho, reduzindo o número de clientes independentes para os fornecedores. Muitos retalhistas europeus, que operam em vários mercados, adquiriram retalhistas nacionais independentes, tornando-se actores globais.

Há oito retalhistas europeus no top 20 dos maiores grupos de distribuição à escala planetária, estando a Schwarz (Lidl), Aldi e Carrefour no top 10. Qualquer um desses oito grupos possui volumes de negócios que correspondem a entre quatro e oito vezes o valor total do mercado FMCG português.

O buyer power dos retalhistas é ainda reforçado pelas alianças retalhistas europeias, vulgo ERAs. Nos últimos 10 anos, foi criado um conjunto dessas retail alliances no universo FMCG, a nível europeu. As ERAs entre grandes retalhistas internacionais, que são líderes retalhistas à escala global, proliferaram. Através do seu volume de negócios combinado, os membros destas alianças de retalho de produtos alimentares alcançam vendas na ordem dos 200 mil milhões de euros e que as colocam no Top 3 mundial, apenas atrás do Walmart e bem acima das grandes plataformas digitais como a Amazon ou a Alibaba.

As ERAs estão mesmo a expandir-se para outros canais ou sectores do retalho e o número de canais alternativos para os fornecedores no universo FMCG está, portanto, a diminuir cada vez mais.

As European Retail Alliances, a concentração retalhista, o buyer power ou a redução de canais alternativos para os fornecedores, são reforçados pelo desenvolvimento do retalho moderno, o “balcão único” que levou a um processo gradual e multifacetado de concentração, pela redução do número de operadores e pela redução do grau de independência de um conjunto alargado de actores da cadeia de abastecimento, pressionada a montante e com uma diversidade e concorrência diminuídas a jusante, inclusive pela proliferação de modelos de franchising, com negociações centralizadas e sortidos decididos pelas centrais e não pelos proprietários das lojas.

Obviamente, o buyer power dos retalhistas também está a aumentar através da sua constante integração a montante, fenómeno especialmente sentido na Europa, onde as marcas próprias dos distribuidores representam entre 30% e mais de 50% dos produtos vendidos nas respectivas lojas. Em Portugal, de acordo com a Nielsen IQ, em apenas dois anos, essa parcela de vendas passou de pouco mais de 36% para um valor próximo de 45%, ou, se quisermos, utilizando um valor actual do mercado FMCG em Portugal acima dos 16 mil milhões de euros, entre 2021 e 2023, um valor próximo de 1.400 milhões de euros de vendas transitou das marcas de fabricante para as dos distribuidores.

Marcas de Fabricante e marcas próprias competem directamente e a sua permutabilidade e substituibilidade é muito facilmente observável, sendo que os consumidores compram alternativamente marcas concorrentes de fabricantes e de retalhistas nas mesmas categorias. Isto é evidenciado, por exemplo, pelo facto de muitas campanhas de marketing e promoções dos retalhistas serem expressamente concebidas para destacar, aos consumidores, a substituibilidade das marcas retalhistas relativamente às marcas dos fabricantes, em termos de preço e qualidade.

O desenvolvimento das marcas próprias aumenta, inequivocamente, o buyer power dos retalhistas, reforçando, mais ainda, o seu enorme poder e influência sobre as cadeias de abastecimento. Um relatório recente da autoridade francesa da concorrência afirmava que enquanto os retalhistas podem, com bastante facilidade, encorajar os consumidores a mudar o seu opção de compra para produtos concorrentes, os fornecedores dificilmente podem incentivar os consumidores a mudarem de insígnias retalhistas.

Por outro lado, as especificidades do mercado retalhista no universo FMCG significam que o buyer power pode ocorrer mesmo em níveis de quota de mercado mais baixos e que o poder de compra pode surgir com mais frequência do que noutros sectores de actividade, considerando a multiplicação e a dimensão dos grupos de compradores retalhistas multinacionais e globais a operar na Europa.

As autoridades de concorrência nacionais começam a reconhecer esse poder, apesar das suas quotas de mercado a jusante e, por exemplo, o Bundeskartellamt concluiu há poucos anos que se um fornecedor realizasse mais de 7,5% do seu volume de negócios com um único retalhista, estaria economicamente dependente desse retalhista. Isto é ainda mais verdadeiro em mercados, como o português, onde o número de operadores relevantes não chega a 10 e não há alternativas equivalentes à eventual perda de um dos clientes mais relevantes,

Na prática, a maioria dos grandes retalhistas representará para os seus fornecedores uma via de entrada no mercado desproporcionalmente importante para os fabricantes detentores de marcas, uma vez que um subconjunto de insígnias de grande consumo, como as lojas de desconto com sortidos muito curtos, tendem a colocar nos lineares apenas ou quase exclusivamente as suas marcas próprias. Pelo contrário, um fabricante individual de produtos de marca representará, normalmente, uma proporção muito pequena das vendas e do cardex de produtos de um retalhista, mesmo quando falamos das marcas de maior dimensão e maior reconhecimento.

Os próprios retalhistas reconhecem que os seus supermercados geralmente não competem com produtos individuais, mas com o seu portfólio completo de produtos, o que explica a influência muito limitada que os detentores de marcas terão sobre os retalhistas. As autoridades francesa e alemã, em diferentes relatórios, indicavam que nenhum fabricante ou fornecedor de produtos, por exemplo na área alimentar, oferece uma gama que inclua a totalidade ou uma parte substancial dos artigos exigidos pelas insígnias retalhistas.

Existe, hoje, um alargado conjunto de estudos que sugerem que o aumento do buyer power pode impactar negativamente – e de diferentes formas - a economia ou a competitividade do mercado e esses mesmos estudos sugerem que o poder excessivo dos compradores e a formação de grupos de compras a retalho, de alianças, a nível nacional ou internacional, podem reduzir a inovação, a variedade e/ou a qualidade dos produtos, penalizando quer os operadores da cadeia de abastecimento quer, especialmente, o próprio consumidor.

Por tudo isto, Bigger não significa forçosamente Better,