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AUCHAN + MINIPREÇO: BISPO PARA C4
Também o mercado do retalho alimentar em Portugal se assemelha a um tabuleiro de xadrez, com as diferentes insígnias a moverem as suas peças no sentido de defenderem os seus territórios
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Quem dá os primeiros passos no xadrez, aprende rapidamente a chamada Abertura Italiana: Peão para E4; Cavalo para F3 e Bispo para C4. O Bispo branco em C4 evita que as pretas avancem pelo centro e ataca a casa vulnerável F7.

Também o mercado do retalho alimentar em Portugal se assemelha a um tabuleiro de xadrez, com as diferentes insígnias a moverem as suas peças no sentido de defenderem os seus territórios, penetrar nas áreas de influência dos seus rivais e conquistar ‘oxigénio’ que lhes permita crescer em penetração, em dimensão e frequência da cesta de compra, em atractividade junto do consumidor, em quota de mercado e em capacidade negocial.

Temos de recuar década e meia para observar operações de aquisição de dimensão muito relevante em território nacional. Em 2007, a Sonae comprou a operação em Portugal do Carrefour e poucos meses mais tarde a Jerónimo Martins adquiriu as lojas Plus, que o grupo Tengelmann possuía no nosso país. Numa escala mais diminuta, em 2012, o Grupo DIA comprou as lojas de drogaria Schlecker ao grupo alemão com o mesmo nome.

Depois disso, o marco maior do mercado refere-se à entrada da Mercadona em Portugal com a abertura das primeiras lojas em 2019. Numa óptica diferente, há a destacar a crescente internacionalização do Grupo Jerónimo Martins, na Polónia e na Colômbia, com perspectivas de alargamento a outros países do Leste Europeu (hoje, a parcela do negócio português da JM equivale a não mais de 20% da facturação total do Grupo)

Há, claro, muitos outros movimentos de menor dimensão a considerar. Por exemplo, nestes últimos anos desapareceram alguns pequenos operadores, parte deles de implantação regionalizada, de que são exemplos a Alisuper, o Grupo Sá, a GCT, a Grula ou a Coopertorres. Em paralelo, verificaram-se também vários encerramentos a nível de operadores grossistas e o progressivo definhamento do comércio alimentar mais individual e tradicional.

Em ângulo oposto, merece destaque o forte impulso das insígnias de franchsing, como as ‘associadas’ a Sonae (Meu Super) e Jerónimo Martins (Amanhecer), e outras independentes, como a Covirán e a SPAR, ou insígnias de comércio organizado como a CNR e o Aqui é Fresco. Bem como o investimento das diferentes insígnias focalizado, especialmente nas áreas urbanas, nas chamadas lojas de proximidade. Há ainda a entrada no mercado de novas insígnias internacionais, a dar os primeiros passos em território português e geralmente focadas em áreas específicas do FMCG, casos da Primor, da Normal ou da Pepco.

Por tudo isto, o anúncio da aquisição da totalidade da operação do Grupo DIA em Portugal pela Auchan, nada tendo de especialmente surpreendente, acaba por ser como que uma Manobra Francesa nesse grande tabuleiro de xadrez que corresponde ao Mercado FMCG nacional.

Socorrendo-me apenas dos meus 10 anos de Centromarca, recordo que a quota de mercado do DIA/Minipreço no início da década passada rondava os 8% e que em 2012 era fechada a operação de compra das lojas de drogaria da Schlecker em Portugal (posteriormente convertida na insígnia Clarel) e que o grupo, nessa altura, atingia as 600 lojas. Então, o DIA/Minipreço batia-se, taco-a-taco, com o Lidl pelo 4.º posto do ranking da distribuição alimentar nacional, atrás de Sonae, Jerónimo Martins e Intermarché.

Desde aí, se a rede de lojas – embora em quebra - manteve uma relativa estabilidade (excepção feita a 2021, com a decisão de encerramento das cerca de 70 lojas da Clarel, embora dezena e meia tenha sido posteriormente reconvertida em lojas Minipreço), a quota de mercado sofreu uma erosão quase constante, com uma fugaz inversão de ciclo nos meses iniciais da pandemia.

Hoje, dependendo das fontes, o DIA/Minipreço terá uma quota de mercado entre os 3 e os 4% e situar-se-á no 7.º ou 8.º lugar daquele mesmo ranking, com valores relativamente próximos do Aldi. Ainda assim, essa cada vez mais magra quota de mercado corresponde a um interessante e importante parque de quase 490 lojas, de diferentes titularidades (próprias e em regime de franchising), de diferentes localizações (urbanas e fora dos centros urbanos) e diferentes dimensões.  

A Auchan, por seu lado, assenta o grosso do seu negócio na área dos hipermercados, possuindo actualmente 36 hipers e supermercados de grande dimensão. Em adição, nos últimos anos, o retalhista francês arrancou com uma estratégia de proximidade, com a insígnia My Auchan, especialmente na zona da Grande Lisboa, com um parque actual de 40 lojas (e com as primeiras aberturas no Porto a ocorrerem já em 2023). Apesar da dinâmica observada, as lojas MyAuchan representam ainda uma parcela relativamente curta da facturação total da Auchan no nosso país.

Como é sabido, o peso dos hipermercados tem vindo a perder progressivamente importância e se há uma década oscilavam entre os 27% e os 28% do total das compras das famílias portuguesas, hoje essa parcela não ultrapassa os 21%, sendo que em períodos de maiores dificuldades financeiras – como os que atravessamos actualmente – a redução da cesta em cada visita às lojas e o aumento da frequência dessas mesmas visitas, se converte num factor conjuntural que tende a penalizar mais os hipermercados e a favorecer os supermercados e lojas de proximidade.

Por isso, não espanta que a quota de mercado da Auchan tenha sentido esse impacto e que de valores a rondar os 6,0-6,5% de há uma década, se tenha verificado uma quebra ligeira, mas cumulativa e progressiva que deixa hoje a insígnia francesa com uma quota de mercado entre 4,0 e 4,5%.

Uma referência adicional pera chamar a atenção que a nível de sortido, se do lado do Minipreço, observamos um posicionamento a meio caminho entre os supermercados mais convencionais e as insígnias de sortido curto, com um share de marca própria nas vendas totais na ordem dos 45%, no caso da Auchan estamos perante a cadeia mais ‘marquista’ de entre o conjunto de pesos pesados que operam no mercado português. Ainda assim e apenas nos últimos doze meses, aquele share de marca própria saltou dos 30% para os quase 35%.

Por tudo isto, esta operação parece fazer um razoável sentido e corresponde a um movimento que se havia, de alguma forma, antecipado. Há uma razoável complementaridade entre as estratégias e posicionamentos das duas insígnias. Na impossibilidade da continuidade da operação do Grupo Dia em Portugal, esta aquisição permite o reforço de uma outra insígnia que precisava de uma injecção de energia e que teria alguma dificuldade em conseguir penetrar, de forma orgânica, em áreas do mercado em que não estava presente (como é o caso dos supermercados de pequena/média dimensão). Aproxima a Auchan de territórios mais afastados da malha urbana. Pode permitir aproveitar lojas bem inseridas nos principais tecidos urbanos, mas que, aparentemente, não estavam a dar a melhor resposta aos consumidores das suas áreas de influência. Pode possibilitar uma melhor oferta e um sortido mais adequado a consumidores com necessidades bem concretas.

Mas nem tudo serão, certamente, rosas…

Estamos a falar de duas organizações com culturas bem distintas, estruturações muito diferentes, operações com amplas distinções, linguagens e comunicações direccionadas para diferentes públicos. Como sempre acontece nestes processos, as dificuldades maiores não serão, julgo, aquelas que se observarão nas frentes-de-loja, mas as que ocorrerão na rectaguarda e que irão implicar, por certo, muito investimento a nível organizacional, operacional, logístico, comercial e comunicacional.

Do ponto de vista do mercado, esta operação consolida a participação da Auchan, possibilita-lhe a entrada ou reforço da presença em localizações e segmentos onde estava ausente ou ainda sentia dificuldades de afirmação. A adição das quotas de mercado posiciona o ‘novo’ Auchan acima da Mercadona e também um pouco acima do Intermarché, saltando do actual sexto para o quarto lugar do ranking do retalho alimentar em Portugal. Afirma mais claramente o campo dos retalhistas convencionais por contraponto com os chamados retalhistas de sortido curto e permite, à partida, um acesso mais consistente das marcas aos seus consumidores.       

Do ponto de vista do consumidor, é expectável que possa ser positivamente surpreendido por um sortido mais amplo e pela presença de produtos de melhor qualidade. Os layouts das lojas Auchan (mesmo no formato MyAuchan) são bastante distintos dos actuais Minipreço, pelo que a experiência de compra pode também atrair novos consumidores sem que isso signifique o abandono ou a menorização da clientela actual. Pode reforçar a presença em localizações muito favoráveis, especialmente nas lojas de proximidade da malha urbana, captando também as compras de quem nos visita e dos novos habitantes destas áreas.

Do ponto de vista dos fornecedores, pode existir o reforço das relações comerciais com um parceiro histórico, mas que adquire agora uma nova atractividade para as marcas presentes, em face do alargamento da operação, para outras marcas que não apenas as líderes pelos diferentes posicionamentos de lojas e mesmo para marcas de influência mais regionalizada em face da malha geográfica muito mais alargada do parque de lojas resultante desta aquisição.

Foi este conjunto de argumentos que levou a Centromarca a saudar a concretização deste acordo.

Porque nos meses que mediaram entre a comunicação formal da intenção de venda por parte do Grupo Dia e o anúncio do negócio se foram aventando várias possibilidades de realização desta transacção, seja em bloco, seja de forma retalhada, algumas das quais poderiam ser de molde a gerar dinâmicas menos interessantes para as empresas fornecedoras e para as suas marcas.

Porque a mesma permitirá a continuidade da operação de um importante parque de lojas, próprias e em regime de franquia, por alicerçar a presença da Auchan em Portugal e por reforçar, à partida, o espaço que as marcas necessitam para manter a sua relação com os consumidores.

Porque, como referia Nuno Fernandes Thomaz, presidente da Centromarca: “este desfecho, se autorizado pela AdC, (…) poderá ser um passo positivo rumo a um mercado de grande consumo, em Portugal, mais competitivo e equilibrado”,