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Opinião
AFINAL, O QUE É UMA COMPRA INTELIGENTE?
Como é que se escolhe um eletrodoméstico num corredor com dezenas de modelos e marcas? O mais caro é, necessariamente, o melhor? A marca com o nome que carrega mais pergaminhos é, necessariamente, a melhor? E o que é afinal a compra inteligente?
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Fui, há dias, convidado a participar na mais recente edição do podcast POD Pensar da DECO, focado no tema das promoções e em antecipação desse fenómeno comercial: a Black Friday.

O respectivo texto introdutório referia que, às portas de mais uma Black Friday, um conceito de marketing importado dos Estados Unidos, que prevê um concentrado de generosos descontos em grandes e pequenas superfícies comerciais, promovemos a reflexão sobre um dos momentos do ano mais aguardados por consumidores e marcas. Que pulsão é esta dos consumidores pelo “desconto”? Que poderoso magnetismo é este que exercem as promoções anunciadas, nesta altura, com pompa e luzes florescentes?  O que é que é mais importante para o consumidor: o que ele vai gastar, ou o que ele vai poupar? Quais são as variáveis que influenciam o processo de decisão? A etiqueta amarela com um preço riscado, mais do que o preço em si? E como ter a certeza de que o desconto é real? Como fintar as fraudes?  

E acrescentava-se que para que a compra seja inteligente – como agora se diz –, não basta driblar promoções que, no final das contas, não o são. Como é que se escolhe um eletrodoméstico num corredor com dezenas de modelos e marcas? O mais caro é, necessariamente, o melhor? A marca com o nome que carrega mais pergaminhos é, necessariamente, a melhor? E o que é afinal a compra inteligente?

A conversa fluiu para múltiplos temas relacionados com o grande mundo das promoções e pode ouvi-la calmamente por exemplo AQUI [no Soundcloud]ou AQUI [no Spotify], mas valerá a pena aproveitar a oportunidade para, mais detalhadamente, responder àquelas questões inicialmente colocadas pelo moderador Aurélio Gomes.

Então, afinal que pulsão é esta dos consumidores pelo “desconto”? Supostamente, a busca pela melhor proposta de valor e o convencimento, por parte do consumidor, de estar a aproveitar uma oportunidade e a fazer a aquisição ‘inteligente’, numa atitude de alguma forma induzida pela comunicação e publicidade e também pelo ‘politicamente correcto’, sendo que a busca do ‘desconto’ é , nos dias de hoje, claramente uma atitude premiada do ponto de vista social.

E que poderoso magnetismo é exercido pelas promoções anunciadas, nesta altura, com pompa e luzes florescentes?  As promoções são comunicadas, por exemplo, via media, via folheto e em loja. Hoje o Consumidor usa mais as promoções do que efectivamente as aproveita, gerando o que normalmente designamos como canibalização da venda-base, sendo que, actualmente, as promoções estão saturadas e têm baixo efeito multiplicador, não esquecendo que as promoções das marcas de fabricante (MDF) no universo FMCG são financiadas pelos fornecedores, nas são também uma forma de diminuir o gap de preços entre marcas próprias (MDD) e MDF, induzido pelas margens exageradas praticadas pelos distribuidores.

Mas o que é mais importante para o consumidor: o que ele vai gastar, ou o que ele vai poupar? A ordem correcta deveria ser: o que vai comprar > o que vai gastar > o que vai poupar, evitando que a potencial busca da poupança possa tender a gerar compras não adequadas, porque, afinal, as melhores oportunidades são aquelas que se adequam às nossas necessidades, sempre tendo consciência que nem todas as compras são motivadas pela óptica do gasto: há produtos em que aproveito o melhor preço, noutros não abdico da minha preferência.

Quais são as variáveis que influenciam o processo de decisão? Desde logo as necessidades, depois, obviamente, as minhas disponibilidades financeiras e o óbvio match entre as duas. Mas para além dos preços, há espaço para sortido, experimentação, inovação, sustentabilidade, experiência de compra, qualidade de serviço. Hoje as rotinas de compra sofreram alterações, com reduções de cesta e com trocas de produtos (dentro da mesma gama e para gamas complementares, mais baratas), mas, ainda assim, há sempre produtos de que não abdicarei, pelo que é sempre importante não esquecer aquilo que poderemos designar como parcela estática do mercado.

A etiqueta amarela com um preço riscado, influenciará mais do que o preço em si? Parece claro que a atracção da etiqueta amarela é tanto maior quanto maior for a percepção da vantagem obtida, ou, de forma inversa, quanto menor for o conhecimento real dos preços. O preço riscado (ou a indicação de percentagem de desconto) oferece a noção de ‘oportunidade’ num mercado onde convivem estratégias de comercialização bem distintas, umas apoiadas no conceito de Highs-and-Lows outras apostando na via do chamado Everyday Low Price. Há, como sabemos, categorias de produtos em que as vendas em promoção correspondem a mais de 75% das vendas totais, sendo que, em boa verdade, o consumidor não persegue as promoções, as promoções, elas sim, perseguem-no fora, à entrada e dentro da loja. Em boa verdade, retomando a normalidade em termos de comportamento social e de mobilidade, quatro em cada cinco consumidores não muda propositadamente de loja na busca específica dos melhores preços, escolhendo – isso sim – as melhores oportunidades que surgem nas lojas em que faz compras naquele momento, nas lojas que habitualmente utiliza.

E como ter a certeza de que o desconto é real? O desconto é real em face do preço ‘normal’ de prateleira e se cada consumidor deve estar sempre atento relativamente à vantagem real oferecida, essa certeza tem de derivar de uma actuação proactiva e regular de monitorização do mercado por parte das autoridades competentes. De qualquer modo é importante não confundir actualizações de preços, infelizmente muito frequentes neste período de fortíssimos agravamentos de custos, com aumentos especulativos, não esquecendo que há hoje forte absorção de custos adicionais por parte de fornecedores e, presumimos, por parte dos próprios retalhistas.

Então como fintar as fraudes? As fraudes devem ser, sempre, seriamente combatidas pelas autoridades, vigiando, fiscalizando e, sempre que justificável, actuando e punindo os prevaricadores. É importante dotar o mercado de soluções legislativas preventivas e dissuasoras, mas se a via legislativa é importante, essas soluções não devem limitar ou impedir as verdadeiras promoções apenas para evitar as ‘tentações’ ou oportunidades para os prevaricadores. As promoções são essenciais para o funcionamento do mercado e para a posição concorrencial das marcas de fabricante, sendo que o constante empurrar dos consumidores para as MDD torna esta necessidade ainda maior, não esquecendo que Portugal é o país da Europa Ocidental, com – de longe – o maior diferencial de preços entre marcas próprias e marcas de fabricantes. Apenas a título de exemplo, as marcas próprias valem 43% e 65% das vendas dos supermercados – em volume – de bebidas ou de produtos de higiene pessoal. Mas essas vendas correspondem apenas a 19% e a 30% das vendas desses produtos – em valor – das insígnias da distribuição e apenas por inocência se pode crer que os produtos das marcas próprias têm um custo tão manifestamente inferior e não vislumbrar que essa diferença de preços resulta, amplamente, de diferenças discriminatórias de margens comerciais.

Como é sabido, embora o fenómeno Black Friday se alargue hoje a quase todas as áreas do comércio, foi na área da electrónica de consumo e dos produtos de linha branca que ele ‘germinou’ e onde, ainda hoje, assume maior expressão. Daí a pergunta sobre como se escolhe um eletrodoméstico num corredor com dezenas de modelos e marcas? Desde logo é imperativo defender, em democracia, a liberdade de escolha do consumidor, sendo que restringir a oferta não é nem nunca será uma solução. A escolha depende das funcionalidades que se pretendem com a compra do produto e a comparação não se pode restringir apenas ao preço, sendo relevante que o consumidor obtenha, previamente à compra, a melhor informação (digitalmente, em loja, sobre serviço pré e pós venda,…) relacionada com o produto que pretende adquirir.

E o mais caro é, necessariamente, o melhor? Isso dependerá, obviamente, do que se pretende comprar. As diferenças de preços, justificadas por diferenças de funcionalidade e de qualidade percebida são não só legítimas, como perfeitamente justificadas, sendo que, normalmente, um produto mais caro tem uma justificação para tal… sob pena de pura e simplesmente não vender. Por vezes, em bens deste tipo, as comparações são meramente ilusórias, porque não estamos sequer a comparar produtos semelhantes, mas apenas produtos destinados a satisfazer uma necessidade aparentemente similar.

A marca com o nome que carrega mais pergaminhos é, necessariamente, a melhor? Parece haver alguma tendência para esquecer que são sempre os consumidores que atribuem os ‘pergaminhos’ às marcas, havendo marcas incumbentes e marcas ‘desafiadoras, sendo que estas últimas se pretendem, tão rapidamente quanto possível, transformar em incumbentes, marcas líderes e marcas mais reputadas. As boas marcas, recorde-se, estabelecem ligações emocionais com os consumidores que ultrapassam a mera funcionalidade ou o aspecto pragmático da compra, pelo que o valor que estamos disponíveis a despender não se refere apenas ao custo ou à funcionalidade do produto em causa, passando também por essa relação, mais ou menos profunda, entre marca e consumidor.

Então, o que é afinal a compra inteligente? É a compra em que o consumidor face à sua efectiva necessidade, proceda à melhor escolha considerando não apenas o preço, mas também a respectiva qualidade, longevidade, sustentabilidade, qualidade de serviço (pré, durante e pós), inovação, responsabilidade, reputação e relação empática que o produto e a marca criem consigo. A compra seria verdadeiramente inteligente se a todas essas características se adicionasse uma verdadeira não discriminação em termos de preço, de espaço ou de sortido e um bom exemplo disso mesmo pode ser encontrado na esfera digital com o aparente insucesso das marcas próprias da Amazon. Nesse gigante marketplace, a menor imposição em termos de sortido, de espaço comunicacional ou de preço, faz com que o consumidor realize uma escolha mais ampla, menos discriminatória, mais democrática e, obviamente, mais inteligente ao invés do que verificamos em muitas superfícies comerciais onde o consumidor é conduzido, de forma nada subtil, para a compra de determinados produtos (e, obviamente, em detrimento de outros).

Em síntese, mesmo tendo perdido a ‘novidade’, o fulgor e efeito mobilizador de vendas de há uma década atrás, o fenómeno promocional está aí, para lavar e durar, agora também empurrado pelo contexto económico adverso e pela perda de poder de compra do consumidor, mas também assente em estratégias comerciais da larga maioria das insígnias relevantes, que coloca na promoção e na comunicação do ‘preço mais baixo’ o seu principal foco.

Para as marcas, numa fase em que, como se referiu, o consumidor está a ser induzido e seduzido para a compra das marcas próprias, as estratégias promocionais, embora não gerando aumentos de vendas substanciais face ao que poderíamos designar como compra ‘normal’, é – neste período – fundamental para não perder, pela via dos preços, o relacionamento na prateleira com o shopper. A promoção oferece oportunidades de contacto com o consumidor e permite reduzir parte substancial do exageradíssimo diferencial entre preços ‘normais’ das marcas dos fabricantes face às marcas próprias, diferencial que é, desde sempre, o maior trunfo das marcas ‘brancas’ para conquistar a atenção e a carteira do consumidor.