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A CHAVE OU O DINHEIRO? O TEMPO OU O TRABALHO?
Há quase trinta anos, nos primórdios da televisão privada em Portugal, um concurso bastante simples ganhou uma certa notoriedade na grelha da TVI. O programa ‘Amiga Olga’ era emitido, ao que recordo, dos estúdios do Porto e ao final da tarde.
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A CHAVE OU O DINHEIRO? O TEMPO OU O TRABALHO?

Há quase trinta anos, nos primórdios da televisão privada em Portugal, um concurso bastante simples ganhou uma certa notoriedade na grelha da TVI. O programa ‘Amiga Olga’ era emitido, ao que recordo, dos estúdios do Porto e ao final da tarde. Um concurso televisivo conduzido por Olga Cardoso, que nessa época era uma verdadeira estrela da rádio portuguesa, tendo sido – durante muitos anos – a parceira de António Sala no Despertar, da Renascença, programa que seria o precursor do modelo actual do ‘programa da manhã’ de muitas das principais rádios do país.

Olga Cardoso, com a ajuda de célebre rapaz do gongo dourado, conduzia os concorrentes ‘felizes e contentes’ por um conjunto de questões que, ultrapassadas, conduziam a um dilema final: levar o dinheiro já ganho para casa ou abdicar do dinheiro e escolher uma chave que daria acesso a um dos vários prémios antecipadamente conhecidos: de uma bicicleta ou máquina de lavar a uma mota ou até a um carro, sendo que naquela época, o ‘carro’ era o prémio de sonho de muitos portugueses e o momento alto de qualquer concurso que pretendesse ter sucesso.

E, chegado esse momento, a plateia de figurantes pagos do programa, desdobrava-se em gritinhos visando incentivar o/a concorrente a seguir uma daquelas duas opções: ‘o dinheiro, o dinheiro’…. ‘a chave, a chave’…  A frase, na altura, pegou… e ainda hoje, sempre que ouço alguém dizer, de forma mais veemente, ‘o’ dinheiro… mentalmente repito: “a chave, a chave”, nessa interrogação permanente entre o conhecido e o incerto, ‘o pássaro na mão” e as duas aves que podem potencialmente fugir e voar.

Entretanto, a tempestade que nos abalou desde Março de 2020 tem vindo a provocar mudanças profundas em múltiplos aspectos das nossas vidas: enquanto seres humanos, enquanto famílias, enquanto membros de comunidades e colectividades, enquanto profissionais. E se há aspectos que, mais cedo ou mais tarde, regressarão a padrões próximos do mundo pré-covid, há outras vertentes que dificilmente regressarão a essa ‘normalidade’.

Uma das áreas onde as mudanças poderão ser mais fundas e sistemáticas, será, certamente, a da organização do trabalho. Em muitas empresas, especialmente aquelas onde existe o que normalmente se designa como ‘chão-de-fábrica’, seguramente o trabalho presencial perdurará. Mesmo noutro tipo de empresas haverá sempre funções e até mesmo pessoas, para quem as rotinas do trabalho presencial são fundamentais.

E as razões para isso podem ser muito diversificadas: da exiguidade dos espaços e dos meios para a realização do trabalho a partir de casa à compaginação das rotinas com as de outros membros dos agregados familiares, da dificuldade em conseguir tracção e performance trabalhando isoladamente à dificuldade de gestão de horários e tarefas quando os tempos não estão devidamente compartimentados.

No entanto, para muitas empresas, para muitas funções, para muitos profissionais, esta janela gerada pela pandemia criou e está a criar as condições para reequacionar a forma como organizações e pessoas podem e devem interagir no mundo do trabalho.

Esta semana, a directora geral da Roche Diagnostics em Portugal, Nazli Sahafi, referia em entrevista à jornalista Ana Marcela, no ECO, que a sua empresa decidiu acabar com os horários, indicando que caberá a cada um dos trabalhadores (mais de cem) definir o seu horário de trabalho e a partir de que local desempenha as suas funções, acrescentando que “o trabalho é o que se faz e não onde se está ou quantas horas”.

Confesso que, por feitio, por vocação e pelo tipo de trabalho que há quase trinta anos desenvolvo, para mim esta é quase uma verdade de La Palisse, E desde que o mundo das comunicações nos deu mais e melhores ferramentas, costumo dizer que logo que tenha um telefone, um portátil e sinal (decente) de net, poderei fazer uma parte (muito) substancial do meu trabalho em qualquer ponto do mundo, sem limitações, nem dificuldades.

Mas será esta uma verdade absoluta? Aplica-se a todas as empresas? A todas as funções? E, obviamente, a todos os profissionais? O que se tenderá a ganha com esta flexibilidade não gerará perdas a outros níveis, como as da motivação, da cultura das organizações ou da simples interacção social entre colegas de trabalho? Como poderão funcionar profissionais que interagem e cujas tarefas são interdependentes se, para além de não compartilharem o espaço, também não compartilharem o tempo?

Esta, por certo, não é apenas uma questão relacionada com a flexibilidade de actuação, o bem-estar, a felicidade ou a melhor compaginação entre vida e trabalho (ou trabalho como parte da vida) dos colaboradores da organização. Ou com a capacidade das organizações de gerar oportunidades e desafios motivantes para os seus colaboradores, ou da forma como as políticas remuneratórias ou de incentivos podem ser um factor de atracção e de competitividade na captação e manutenção de talento nestes novos cenários.

Este é também um enorme desafio para as lideranças.

Não apenas a nível organizacional, cultural ou motivacional. Não apenas a nível da não penalização ou, preferencialmente, do incremento da performance e dos resultados nestes períodos críticos de transição organizacional. Não apenas na capacidade de captar e, especialmente, de manter os melhores a trabalhar na organização.

Este é um desafio e um momento em que as relações profissionais implicam um grande vínculo a nível de confiança mútua, entre líderes e colaboradores. E essa relação estabelece-se para lá do tempo e do espaço. Este vínculo vale para x horas por dia e y dias por semana, ou é um vínculo que sobrevive à ‘ausência’ de um horário de trabalho e de um escritório?

No fundo, o empregador, como até aqui, ‘compra’ tempo ou passará a ‘comprar’ trabalho? E o colaborador estará disponível a ser remunerado pelo trabalho que entrega ou pelo tempo que demora a realizá-lo?

É justo que um trabalhador mais eficaz do que outro, ainda que desempenhando as mesmas funções, seja mais bem remunerado, seja porque pode ter mais tempo disponível depois de executadas as suas tarefas, seja por que pode realizar mais tarefas (e obter mais valor) no mesmo espaço de tempo?

Apesar de pessoalmente ser um claro adepto desse nexo entre produtividade e remuneração e considerar que esta mudança de paradigma poderá ser um claro indutor da melhoria de produtividade de que a economia portuguesa tanto precisa, tenho também consciência que o mesmo – à luz dos modus operandi actual – levanta muitíssimas interrogações que passam, por exemplo, por saber como se remunera os períodos de não trabalho ou de impossibilidade de trabalhar, ou como se remuneram funções cujos KPI sejam menos definidos e mensuráveis, ou como se remunera todo o tempo dedicado à empresa (por exemplo, ao nível dessa maleita dos nossos dias chamada reunite), mas que não é especificamente produtivo, ou de como, no limite,  não se cede à tentação de enveredar por uma überização do trabalho.

Para além, claro, das profundas alterações à actual legislação laboral que a implementação destas linhas de orientação obrigatoriamente implicaria, cenário pouco provável no quadro e contexto político actual.

Mas os desafios para as lideranças estabelecem-se também a outros níveis, a começar desde logo pela sua qualidade e força motivadora (porque, em boa verdade, as dificuldades de muitas organizações resultam das debilidades das suas lideranças), mas também na capacidade de libertar a organização do imperativo de controlo da presença física e do tempo cronométrico do trabalho.

Como sabemos, continuam a existir muitas organizações que não se sentem (ainda?) capazes de dar esse passo, de fazer essa transição, quantas vezes com o argumento de isso promove a redução do nível de compromisso, a desresponsabilização e a menor performance dos colaboradores, embora em alguns casos se perceba estar subjacente a dificuldade em perder o poder de ‘comprar’, por defeito, o tempo do colaborador e assegurar a sua presença no espaço.

Saltamos, pois, do “a chave ou o dinheiro?” quase naïf do início dos anos noventa, para o bem actual e menos prosaico “o tempo ou o trabalho?”, uma pergunta que engloba uma miríade de questões bem complexas que lhe estão associadas, mas que, mais do que tudo, implica ter a coragem de estabelecer vínculos de confiança que façam confluir liberdade e responsabilidade, produzindo, simultaneamente, riqueza e bem-estar.

Muito provavelmente, o passar do oito pré-pandémico para o oitenta adoptado na Roche Dignostics será um salto demasiado arrojado e de trajectória incerta para uma elevada parcela de organizações, em especial para as que nasceram e sempre viveram no formato presencial. E a adopção de soluções híbridas combinando remoto com físico, libertando, mas responsabilizando, será – julgo – a solução mais assertiva e mais preconizada, permitindo uma transição organizacional mais harmoniosa e pressionando para que, também do ponto de vista legislativo, se proceda à transição que crie um quadro mais adequado de regulação da relação laboral.

Sendo que se ultrapassarmos com sucesso esta fase de transição, estaremos – estou certo – a construir um Portugal melhor, mais rico e mais sustentável.