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A ALIMENTAÇÃO NÃO É UM LUXO
A taxação em sede de IVA dos produtos do agro-alimentar corresponde, hoje, a uma enorme manta de retalhos: difícil de gerir
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A taxação em sede de IVA dos produtos do agro-alimentar corresponde, hoje, a uma enorme manta de retalhos: difícil de gerir pelos colocadores de produtos no mercado, de complexa fiscalização pelas autoridades competentes e de muito difícil compreensão pelo lado dos consumidores. 

Tal como acontece noutros setores, o agro-alimentar enfrenta uma extensa gama de contribuições e impostos, como Segurança Social, o IRC, Derrama, IMI, ISV, e taxas específicas ligadas à sanidade e segurança alimentar. O IVA, central na formação de preços, varia entre 6%, 13% e 23% para produtos agroalimentares, mas a distribuição aparentemente inconsistente destas taxas gera desafios competitivos. Além disso, a complexa interação entre IVA e Impostos Especiais sobre o Consumo, como os do tabaco, álcool ou bebidas açucaradas, suscita críticas devido à potencial dupla penalização para estes produtos. 

Diante deste cenário, surgem assim uma série de argumentos favoráveis a uma maior harmonização fiscal. 

Em primeiro lugar, porque a liberdade de escolha, a diversidade nutricional e a qualidade de vida das famílias são colocadas indirectamente em causa com a situação atual. Como é fácil perceber – especialmente, em momentos de crise – as diferentes taxações têm implicações na gestão do rendimento disponível por parte das famílias. 

Mas para além desses valores básicos da vida em democracia, há outros argumentos relevantes e válidos que podem ser chamados para esta discussão.

Desde logo, é uma questão de certeza fiscal. A definição das taxas de IVA pelos operadores económicos gera incertezas devido à correspondência entre a designação de venda dos produtos e as rígidas especificações e categorias nos anexos do Código do IVA. Qualquer produto sem enquadramento específico nessas categorias está sujeito à taxa normal de 23%.

Muitas vezes, a aplicação direta da taxa de IVA não é clara, apesar do princípio de boa-fé na escolha da taxa. Assim, os operadores económicos procuram uma maior certeza jurídica, que resulta muitas vezes em pedidos de informação vinculativa à Autoridade Tributária, que por sua vez nega frequentemente esses pedidos, alegando falta de enquadramento na listagem de produtos abrangidos, em defesa da receita fiscal. Harmonizar significaria resolver estas dúvidas da forma mais simples, tornando mais transparente a forma como os produtos chegam ao mercado e libertando a máquina administrativa da sistemática resposta a estes pedidos de informação.

Mais, a definição das categorias para aplicação das taxas de IVA nem sempre considera adequadamente a composição, modo de produção ou valor nutricional dos produtos. Tal resulta em situações em que produtos semelhantes - como um iogurte vs. uma sobremesa láctea, ou uma alface ensacada vs. uma salada pronta a comer - têm taxas amplamente diferentes. Naturalmente, isso influencia as escolhas dos consumidores.

Esta complexidade nas taxas leva alguns operadores a escolher designações que procuram, mais do que refletir transparentemente os produtos, alinhar-se com as categorias nos anexos do Código do IVA, dificultando a compreensão por parte dos consumidores.

Essa mesma diferenciação de taxas também prejudica a competitividade fiscal relativa de determinados produtos, matérias-primas e sectores de actividade face a outros. Aí, as decisões tomadas em sede fiscal são negativas e têm consequências financeiras e económicas nocivas, o que não aconteceriam no caso de uma harmonização transversal. 

Um outro argumento a favor da harmonização do IVA diz respeito ao impacto no comércio transfronteiriço, sobretudo com os nossos vizinhos espanhóis. Além da proximidade geográfica, que facilita compras além-fronteira, os preços diferenciados (como acontece nos combustíveis) incentivam a aquisição de produtos num mercado maior e com um IVA mais baixo. Esta desvantagem não prejudica apenas os negócios, mas afeta significativamente a receita fiscal e os cofres públicos. 

Finalmente, a atual construção dos anexos relativos às taxas reduzida e intermédia do Código do IVA é penalizadora da inovação. Essa é uma das principais razões para repensarmos, enquanto País, esta questão. 

Ao particularizarmos excessivamente na descrição dos produtos abrangidos por taxas de IVA mais competitivas, fazemos com que produtos efetivamente diferenciados e inovadores não encontrem abrigo nessas categorias e não possam beneficiar dessa vantagem fiscal. Isto acontece mesmo quando a competição mais direta a estes produtos inovadores está abrangida pelas mesmas categorias. 

Reconhecendo os altos investimentos e riscos que a inovação implica, especialmente em produtos verdadeiramente disruptivos, parece injustificado penalizar esses produtos com a taxa máxima de 23%, apenas por não se enquadrarem em categorias com taxas reduzidas ou intermédias.

Concluindo, e por todas as razões já explicadas, a harmonização fiscal do IVA para produtos agroalimentares é crucial. Este caminho, embora desafiador, tem como objetivo equilibrar os interesses nacionais, dos consumidores, dos operadores e da receita pública. Reconhecendo a necessidade de análises adicionais, estes princípios devem, pelo menos, promover uma discussão séria sobre as incoerências e desigualdades do quadro em vigor, com foco na qualidade de vida, na liberdade de escolha e no impacto estratégico que teria no setor agroalimentar. No fim do dia, o que se propõe é uma fiscalidade que consagre o princípio de que a alimentação não é um luxo, mas uma necessidade básica para todos os portugueses. 

Texto originalmente publicado na edição de 30/11/2023 do Portugal Amanhã