ALMA DE MARCA
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Opinião
AS LEIS SÃO BOAS QUANDO MOSTRAM RESULTADOS NOS TEMPOS MAUS
Assim, é fundamental a existência de meios para monitorizar e fiscalizar o mercado e a existência de capacidade jurídica para converter factos apurados em processos viáveis
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O ano de 2022 fechou com sinais pessimistas, inflação em alta, poder de compra em baixa, consumo em quebra, uma governação em crise, uma guerra que não dá sinais de abrandar e menos ainda de terminar, indicadores económicos  a apontar para a recessão nas maiores potências económicas europeias, contracção económica e demográfica na China. Tudo sinais que geram ansiedade, mesmo nos observadores mais plácidos.

No mundo do grande consumo, os lucros que alguns querem apelidar de excessivos, são o resultado do inflacionamento dos custos e dos preços, mas por baixo da espuma da superfície, vemos os sinais de uma crise que está a penalizar fortemente quem faz efectivamente mover o mercado: o consumidor. Salários que não acompanham a inflação, agravamento de juros a encurtar o rendimento disponível e camadas sobrepostas de downtrading: menores preços, menores quantidades, cestas mais curtas.

Do lado do universo dos associados da Centromarca e do tecido de empresas e marcas presentes nas lojas do retalho moderno a lista de problemas a enfrentar e obstáculos a contornar é extensa e, em muitos casos, de difícil solução. Contudo, diria que há dois temas que se sobrepõem aos restantes na lista de prioridades e de preocupações: como repassar a jusante os agravamentos de custos a montante, reconhecendo que é fundamental ser feito, a bem da sobrevivência financeira das organizações, mas nunca perdendo de vista a perda de capacidade de aquisição dos consumidores e, por outro lado, como enfrentar e estancar o êxodo de vendas das marcas de fabricante para as marcas próprias das insígnias do retalho.

De acordo com os dados provisórios de fecho de 2022, calculados pela empresa de estudos de mercado de referência a este nível, a quota de vendas – em valor – das marcas próprias passou de 36,0% no final de 2020 e de 36,4% no final de 2021 para 39,3% no final do ano recém terminado. Mas se virmos as vendas em volume os números são ainda mais alarmantes: 52,1%, 52,3% e, agora, 55,0%... isto é, mais de metade dos produtos que compramos são de marcas próprias.

Como é fácil de perceber, as velocidades de crescimento das vendas são muito distintas e assimétricas: para um mercado que, em valor, nos últimos três anos cresceu, respectivamente 7,3%, 3,1% e 9,7%, as marcas de fabricante crescem apenas 5,7%, 2,5% e 4,7%, enquanto o crescimento das marcas dos distribuidores foi incomparavelmente mais rápido: 10,5%, 4,3% e 18,3%.

Não estando em causa a presença e o papel das marcas próprias, esta é uma questão da máxima relevância para as empresas fornecedoras. Para algumas delas, em especial as que detêm as 2ª e 3ªs marcas das diferentes famílias de produtos, é mesmo uma questão de sobrevivência.

Não é demasiado difícil enunciar os factores de aceleração das vendas dos produtos de marca própria.  A começar, obviamente, pela própria conjuntura económica e pela perda de poder aquisitivo por parte dos consumidores, empurrando-os, independentemente das suas reais preferências, para a escolha dos produtos mais baratos presentes nas prateleiras.

Mas não só… o alargamento da presença dos produtos de marca própria – mais categorias, mais segmentos no seio de cada categoria, maior presença comunicacional em folhetos e publicidade – ou a subida de sucessivos degraus nos patamares de qualidade, tornam menos renitente a escolha destes produtos por parte de muitos consumidores. Depois, há o fenómeno da prescrição maciça, seja em espaços patrocinados pelas insígnias, seja pela conversão, um pouco acéfala, do mais barato no mais inteligente ou no ‘melhor’ em muitas cabeças. E ainda o retorno do canal horeca de proximidade que se abastece nestas insígnias, em detrimento dos cashs ou dos armazenistas, e que prioriza preço em tudo o que não vai à mesa.

Talvez mais relevante é a conquista de uma parcela crescente do mercado pelo conjunto das insígnias que normalmente designamos de sortido curto, insígnias onde a parcela de vendas, em valor, de marcas próprias, supera os 70% e mesmo os 80% (e que em volume representam uma percentagem ainda mais elevada). Estes retalhistas, ou, se quisermos, os três operadores mais relevantes neste segmento, valem actualmente mais de 19% do mercado e cresceram quase quatro pontos percentuais a sua quota nos últimos três anos.  Como é óbvio se um consumidor deixar de fazer as suas compras num retalhista convencional (onde a sua cesta conterá, em média, entre 30 e 40% de produtos de marca própria) e as transferir para um retalhista de sortido curto (onde essa percentagem sobre para 70 ou 80%), isso mexe com o peso global das vendas de marca própria. E coloca a concorrência entre marcas próprias no topo da lista de preocupações dos retalhistas, sejam os convencionais, sejam os de sortido curto.

Este é, como é fácil de perceber, um contexto muito negativo para as empresas fornecedoras e para as marcas de fabricantes. E com poucas pistas que permitam vislumbrar uma inversão desta tendência.

Mas as marcas, nesta conjuntura, como todos os momentos difíceis que a antecederam, não irão certamente baixar os braços e tentarão encontrar a melhor resposta para questões como as de perceber qual a melhor forma de continuar a merecer a preferência dos consumidores num contexto inflacionário, de continuar a ser relevantes para as estratégias comerciais dos retalhistas ou de ser um factor positivo de diferenciação no frente-a-frente  entre modelos de retalho,

Mas também de definir quais poderão ser a melhores estratégias de para o encurtamento do gap de preços que as penaliza perante as marcas próprias, ou de como podem potenciar estratégias promocionais diferenciadoras como forma de atenuar o seu afastamento dos consumidores ou contrapor argumentos às estratégias de simplificação e redução de sortido dos retalhistas ou ainda como podem afirmar-se e diferenciar-se através, por exemplo, de passos concretos ao nível da inovação, da sustentabilidade, da responsabilidade social e corporativa, da comunicação.

Muitas destas respostas têm uma matriz económica e comercial, algumas têm também uma matriz regulatória associada, noutras passam por questões de percepção e de comunicação, noutras advirão da capacidade de introduzir um plus de arrojo e de ambição às suas actuações. Em qualquer caso, para vencer o amanhã, é preciso sobreviver hoje. E, para isso, será necessária uma dose cavalar de resistência e de resiliência.

Em todo o caso, mudar este estado de coisas implicará também uma maior atenção da parte de quem nos governa e das autoridades que têm responsabilidades na monitorização e fiscalização dos mercados.

Na verdade, verificou-se uma muito positiva evolução do quadro legal que regula as relações comerciais entre operadores ao longo da cadeia de aprovisionamento e que combate as práticas comerciais desleais ou abusivas. E é também verdade que não tendo existido processos muito mediáticos ou multas muito vultuosas, a este nível, se verificou um melhoria clara naquele relacionamento e um acalmar das tensões negociais face ao que se vivia há uma dezena de anos atrás. Mas há que levar em linha de conta que o mercado teve um trend claramente positivo desde que o novo quadro legal, a partir de 2014, começou a produzir efeitos.

Agora vivemos um contexto diferente, uma conjuntura diferente e um endurecimento notório das condições de mercado. Será, pois, este o momento para, como muito maior propriedade, verificar a capacidade real da legislação em vigor, o momento em que a mesma será mais aprofudadamente colocada à prova.

Assim, é fundamental a existência de meios para monitorizar e fiscalizar o mercado e a existência de capacidade jurídica para converter factos apurados em processos viáveis e é ainda fundamental que o poder político e as autoridades percebam o verdadeiro papel da regulação na prevenção e punição das situações de ilegalidade que porventura surjam, o que só é possível se existirem mecanismos adequados e eficazes de vigilância.

Porque só assim se poderá falar num comércio verdadeiramente justo, construído em cima de cadeias de valor justas. Só assim poderá falar numa presença não discriminatória de todas as marcas (sejam as dos retalhistas, sejam as das insígnias) nas prateleiras. Só assim se poderá falar de uma distribuição a assumir a sua função de árbitro em prol do consumidor e não de jogador interesseiro, mais focado em beneficiar os seus produtos do que em atender às necessidades e preferências dos seus consumidores.