ALMA DE MARCA
Ideias e Reflexões #paramarcasquemarcam
Opinião
E SE A BITOLA FOSSA A MESMA?
Imaginemos uma lata de atum, um sumo, um detergente ou um desodorizante de marca própria do retalhista A. E imaginemos que, por um qualquer trambolhão do destino, o mesmo seria colocado à venda no retalhista B.
TAGS

Na esfera ferroviária, bitola refere-se à distância entre os carris de uma ferrovia. Existem diferentes bitolas em todo o mundo, sendo a mais comum a bitola padrão. A questão da bitola é um tema sempre referenciado na longa discussão sobre o investimento do TGV em Portugal e da sua compatibilidade com a rede ferroviária no nosso país e com os sistemas ferroviários dos países vizinhos. Poer exemplo, a bitola utilizada pelo TGV é diferente da bitola padrão em Portugal, o que significa investimentos significativos em adaptações ou construção de novas linhas.

De forma mais coloquial, a expressão "medir tudo pela mesma bitola", refere, por exemplo, o Chat GPT, é uma metáfora que significa aplicar o mesmo critério, padrão ou medida a diferentes situações, independentemente das suas particularidades ou contextos específicos. Na essência, a expressão enfatiza a necessidade de aplicar princípios consistentes e justos em todas as situações, evitando tratamentos diferenciados ou parciais. É uma expressão que apela à igualdade de tratamento e à adesão a padrões comuns em todas as áreas da vida, do trabalho ou, claro, da economia e do mercado.

Vem esta explicação a propósito do título que escolhi para este texto e na sequência de um muito interessante evento realizado na semana passada pelos nossos colegas espanhóis da Promarca, a sua Jornada Anual de Gran Consumo, evento que teve amplos reflexos na comunicação social do país vizinho e que, inclusive, gerou alguns ecos do lado de cá da fronteira.

Na ocasião, lembrou-se que o universo industrial associado ao fabrico de produtos de grande consumo é um sector líder em Espanha (como é, também, dos mais importantes em Portugal), e que o grande desafio que actualmente enfrenta é o de construir uma cadeia de abastecimento mais justa, mais equilibrada, mais competitiva e mais inovadora. E que tal apenas acontecerá se for possível criar valor ao longo de todos os elos da cadeia, porque “o que não é rentável, não é sustentável”.

O alerta sobre os principais factores de destruição de valor foi muito claro: há que combater a venda que aniquila o valor e, em especial, a venda com prejuízo; há que combater a concorrência desleal; há que inverter a falta de apoio aos produtos inovadores colocados no mercado e a consequente quebra dramática da efectiva inovação nos lineares.

Em Espanha, tal como noutros mercados, a concorrência desleal consubstancia-se numa aplicação de margens comerciais superiores aos produtos dos fornecedores/competidores relativamente àquelas que são aplicadas aos seus próprios produtos, no negar ou limitar o acesso dos produtos dos fornecedores/competidores aos lineares, reduzindo a diversidade a que o consumidor pode aceder e no forte constrangimento do acesso dos consumidores aos produtos diferenciadores, desincentivando o investimento na inovação.

Como tal, os nossos colegas da Promarca são totalmente explícitos: uma concorrência saudável passa por uma igualdade de condições de acesso de todos os competidores ao consumidor, condição essencial para gerar, nos operadores presentes no mercado, eficiência, qualidade, inovação e competitividade; para gerar capacidade para competir internacionalmente com boas probabilidades de sucesso; para gerar uma concorrência que faça vencer a meritocracia e não apenas quem tem mais poder de mercado e que actua alicerçado nessa vantagem menos leal.

Recordamos que, também em Portugal, desenvolvemos ao longo da primeira metade de 2023 um amplo trabalho a que demos a devida visibilidade no evento “Redesenhar o Futuro das Marcas”, que teve lugar no Auditório do Arquivo da Torre do Tombo, no último dia de Maio do ano passado.

Também em Portugal, a compressão do mercado, a transferência do consumo para as marcas próprias, a desaceleração da inovação, a compressão do sortido ou a destruição de valor são fenómenos com que os operadores, o mercado e o próprio consumidor diariamente se confrontam. E se, sim, o temporal inflacionista e a quebra do poder de compra ajudam a justificar uma parte deste fenómeno, é também verdade que as suas consequências são fundas e não é crível que se alterem, radicalmente, apenas e só porque o consumidor recupere num futuro próximo (como acreditamos possa vir a acontecer) uma parte da capacidade aquisitiva que perdeu nestes dois últimos anos.

Sem nunca termos em vista uma hostilização dos nossos clientes, que serão sempre nossos parceiros de negócio, é importante uma sensibilização constante de toda a cadeia para aquele princípio de que sem rentabilidade, não há sustentabilidade e para aquela exigência de que seja a meritocracia o factor fundamental de sucesso no mercado.

Como é fundamental olhar para um horizonte mais longo e perceber que sem inovação, não há dinâmica, nem crescimento e que são os fornecedores, em primeira instância, os responsáveis por esse trabalho de construção, mas que apenas o continuarão a realizar se ele puder aceder ao mercado, conquistar a atenção do consumidor e ter condições para obter retorno do investimento realizado.

Como é também fundamental insistir na necessidade de que todos os produtos e todas as marcas beneficiem de regras claras e leais no acesso ao mercado e no contacto com o consumidor. Regras que permitam perceber que o exorbitar de diferenciais de preços de prateleira condiciona as escolhas do consumidor; que a ausência de diversidade em muitíssimas categorias de produto condiciona as escolhas do consumidor; que o inibir o acesso a produtos diferenciados condiciona as escolhas do consumidor. 

Hoje, a limitação de sortidos, os custos de acesso e as margens aplicadas fazem com que cada um de nós seja altamente influenciado e empurrado nas suas escolhas. 

Não está em causa a legitimidade do operador escolher o que, a cada momento, coloca à disposição do consumidor, mas não deve esquecer-se que as escolhas desse mesmo consumidor se limitam aos produtos que ele previamente escolheu. Como não deve esquecer-se que a equação de valor para o consumidor, a tão falada relação qualidade/preço, é condicionada por uma qualidade que se vai aproximando ao longo do tempo, mas também por preços que são crescentemente diferenciados por vontade inequívoca de quem coloca os produtos à disposição do consumidor.

A fechar, um mero exercício de suposição…

Imaginemos uma lata de atum, um sumo, um detergente ou um desodorizante de marca própria do retalhista A. E imaginemos que, por um qualquer trambolhão do destino, o mesmo seria colocado à venda no retalhista B. 

Assumamos agora que as regras de acesso, custos e margens aplicadas pelo retalhista B à marca própria da insígnia A eram equivalentes aos que pratica para as restantes marcas de fabricante presentes na prateleira. 

E que, só por causa disso, o produto da marca própria A, nas prateleiras do supermercado B, passava a custar mais 30%, 50%, 80% ou 110% do que a marca própria B do dono daquele espaço comercial.

Nestas circunstâncias, a marca própria A continuaria a ter, no supermercado B, o mesmo sucesso comercial que aquele que obtém nas prateleiras onde é o produto da casa? 

A suposta vantagem da qualidade, da eficiência no aprovisionamento e do reconhecimento do consumidor, resistiria à política de margens e de espaço do retalhista B? 

Este é, não duvidemos, o desafio que todas as marcas de fabricante enfrentam em todas as prateleiras de todos os supermercados onde nunca são o produto da casa e nunca beneficiam desse tratamento mais favorável.

E é por isso que, pensando no consumidor e num processo de escolha menos condicionado, pensando nos fabricantes, nas suas marcas e em toda a cadeia de aprovisionamento que permite ao retalhista disponibilizar um determinado produto a quem visita as suas lojas, pensando no mercado, nas suas dinâmicas, no esforço de inovação e na capacidade de conquista de clientes externos, mas pensando também nos retalhistas, na diversidade da sua oferta, na sua capacidade de atrair ou reter os seus shoppers e na sua própria rentabilidade, que é importante defender uma maior meritocracia e uma concorrência mais leal entre produtos, marcas e operadores económicos.